domingo, 28 de dezembro de 2008

Uma entrevista de 2004.

Entrevista de Howard Zinn
a Miguel Álvarez Sánchez, de Contracorriente
Entrevista originalmente publica no dia
23-11-2004

Howard Zinn. Contracorriente: Vamos começar por falar de livros.

Howard Zinn: Está bem.

Contracorriente.: Porque escreveu a História popular dos Estados Unidos ?

HZ: Escrevi-a porque estava a dar aulas de História, aulas de História Norte-americana, e procurava um livro que representasse o meu ponto de vista. Isto foi nos anos 70, depois dos movimentos sociais dos anos 60 e desses movimentos sociais criarem o desejo por um ponto de vista que fosse diferente do dos livros tradicionais, ortodoxos. Foi depois do movimento pelos direitos cívicos, depois da Guerra do Vietname, que as pessoas se tornaram mais críticas da política interna, da política externa; mas não havia livros de História Geral dos Estados Unidos que reflectissem essa nova ideia, essa nova crítica. Então, eu procurava um livro assim, as pessoas perguntavam-me se conhecia algum, pessoas que tinham participado no movimento dos anos 60 pediam-me que lhes recomendasse um livro que tivesse um ponto de vista radical e pensei, não, na realidade não sei de nenhum; então decidi: “Vou escrevê-lo”. Às vezes é por isso que se escrevem livros, procura-se um livro, não há e escreve-se. Escrevi-o porque queria contar a história dos Estados Unidos, não do ponto de vista dos presidentes, nem do Supremo Tribunal, nem do Congresso; esta era a forma tradicional, a história tradicional... Olhe, é que tudo se baseia nos presidentes. É irónico porque se se pressupõe que somos uma democracia, não se pode pressupor que devemos exaltar o líder máximo; mas aqui os historiadores diziam: Oh, devemos falar dos próceres, sobre George Washington, sobre John Adams, devemos falar sobre Jefferson e Lincoln, etc, etc. E sobre as pessoas comuns? Todos estes historiadores ortodoxos contam a história do desenvolvimento económico norte-americano mas sempre a partir do ponto de vista dos heróis da indústria: Carnegie Rockfeller, Morgan; foram eles que fizeram a grandeza dos Estados Unidos. Mas estes historiadores não dizem nada sobre as pessoas que trabalharam na refinaria de petróleo de Rockfeller, as pessoas que trabalharam nas siderurgias de Carnegie, as pessoas que trabalharam nos caminho de ferro. Imigrantes irlandeses, imigrantes chineses que trabalharam muitas horas, com um salário baixo e muitos morreram. Estas pessoas foram omitidas da história e eu criei-me numa família de classe humilde.

Comecei a trabalhar aos 18 anos num estaleiro naval. Normalmente, nas famílias da classe média e, naturalmente, nas famílias da classe alta, quando se tem 18 anos, vai-se para a universidade, mas quem pertence a uma família da classe humilde vai trabalhar. Fui trabalhar para um estaleiro e aí comecei a interessar-me pela pessoas trabalhadoras, pela leitura, e comecei, com outros jovens, a organizar os trabalhadores do estaleiro, de modo que tomei consciência e interessei-me pelo movimento dos trabalhadores. Por isso queria escrever a história dos Estados Unidos trazendo à luz os trabalhadores, as lutas operárias, as greves... A maioria dos jovens que vão para a escola nos Estados Unidos não aprendem que houve grandes greves, que foram as lutas operárias que ganharam a implantação da jornada laboral de 8 horas. Se não se conhecem essas greves, essas lutas, pensar-se-á que aquela jornada foi estabelecida pelo Congresso, o Presidente ou, quem sabe?, Deus. Mas não, esta ganhou-se graças às lutas dos trabalhadores, daí eu querer escrever sobre isso. Também os negros foram omitidos, porque embora se falasse de escravatura, realmente não se falava do ponto de vista dos escravos e, inclusivamente, nos anos 30 até saiu um livro famoso de História Norte-americana, escrito por dois famosíssimos professores de Harvard e de Columbia, em que se dizia que o esclavagismo foi útil porque preparou os negros para a liberdade.

Contracorriente: Quem é Howard Zinn? É um radical?

HZ: Espero que sim, mas a palavra radical é frequentemente mal utilizada. Nos Estados Unidos tem-se uma ideia muito vaga do que é ser radical e, por vezes usam a palavra radical como extremista; para mim a palavra radical significa chegar à raiz do problema, mais profundamente que a crítica comum. Por exemplo, esta é a diferença entre um ponto de vista liberal e um ponto de vista radical...

Contracorriente: Qual é a diferença?

Dou-lhe alguns exemplos da diferença: de um ponto de vista liberal diria: “Vamos dar melhor seguro de saúde a mais pessoas; vamos, talvez, dar mais incentivos aos empresários para que proporcionem mais benefícios de saúde aos seus empregados”. De um ponto de vista radical diria: “não vamos mais através dos empresários nem das companhias de seguros, vamos pôr a saúde grátis para todos”. Agora outro exemplo da actualidade. De um ponto de vista é: “Bom a guerra do Iraque não está a ir bem, há uma forma melhor de combater, vamos envolver mais países...”

Contracorriente: Essa é a abordagem de Kerry.

HZ: Exactamente, essa é a abordagem de Kerry: “Vamos envolver as Nações Unidas”. A lógica é extraordinária, se a guerra é imoral, vamos deixar que mais pessoas se unam a esta imoralidade. De um ponto de vista radical, se a guerra é imoral, saiam do Iraque, parem a guerra. Enfrentámos esta mesma situação durante a Guerra do Vietname...

Contracorriente: Diga-nos qualquer coisa sobre o período do Vietname. O que significou para o povo norte-americano?

HZ: Bom, para os norte-americanos, o período do Vietname foi algo sem precedentes na história norte-americana. Nada como isto havia acontecido antes, com o que quero dizer que não houve movimento contra a guerra que fosse tão amplo, tão grande, como no tempo do Vietname. Nas guerras levadas a cabo pelos Estados Unidos sempre tivemos dissidentes, rebeldes que protestavam, inclusivamente na guerra de independência. Todos dizem que foi uma guerra maravilhosa, uma boa guerra, mas, inclusivamente aí, houve muitos norte-americanos que não acreditavam que a guerra revolucionária era para eles, os negros não acreditavam que era para eles, os índios tão-pouco. Os soldados pobres que se uniram ao exército revolucionário não estavam seguros de que esta guerra os beneficiaria, porque sabiam que havia uma classe colonial rica e que, provavelmente, seria a mais beneficiada. Sim, houve ideias e acções dissidentes durante a guerra revolucionária, e é assim em todas as guerras. Na guerra mexicana de 1846-48 em que os Estados Unidos ocuparam quase metade do México, houve soldados norte-americanos que desertaram, se negaram a combater e por aí afora. Na Primeira Guerra Mundial houve uma grande oposição e inclusivamente na Segunda Guerra Mundial que é a chamada “guerra boa”, inclusivamente nela, houve quem dissesse que a guerra não era a solução. Mas nunca houve um movimento tão grande, tão forte, contra uma guerra, como o movimento contra a Guerra do Vietname. Começou lento, começou pequeno; De facto, no início só pequenas manifestações foram levadas a cabo e nós dizíamos: “Nunca vamos ganhar”; “Nunca vamos poder travar o governo dos Estados Unidos”; O governo dos Estados Unidos é muito poderoso”; “Esta é a maior missão militar na Terra, como vamos detê-la ?”; mas o movimento cresceu, cresceu, cresceu.

Contracorriente: Porquê? Porque os norte-americanos estavam a morrer, estavam a perder vidas? É essa a razão?

HZ: Creio que havia muitas razões, sim, porque os norte-americanos estavam a morrer, mas não creio que essa tivesse sido a única razão, porque se tivesse sido a única, isso significaria que aos norte-americanos não lhes importava o que sucedia ao povo do Vietname. E se é certo que ao governo dos Estados Unidos não lhe importava o que sucedia ao povo do Vietname, de facto ao governo também não lhe importava o que sucedia aos norte-americanos. Mas creio que sim, as baixas, as crescentes baixas de norte-americanos no Vietname tiveram um grande efeito no público norte-americano. Mas houve algo mais, foi que o povo norte-americano tornou-se mais e mais consciente de que os Estados Unidos estavam a fazer coisas terríveis no Vietname. Começaram a ver fotografias de marines na televisão, deitando fogo às choças, nas aldeias; viam um marine americano, corpulento, apontar uma pistola a uma pequena mulher vietnamita acompanhada dos filhos. Foi algo que comoveu as pessoas, e depois inteiraram-se do massacre de My Lay. Inteiraram-se um ano mais tarde porque a imprensa é sempre mais lenta a contar estas coisas, porque o massacre de My Lay foi em 1968 e só em 1969 é que saiu na imprensa norte-americana. Então, o povo norte-americano viu fotografias horríveis de soldados norte-americanos a assassinar centenas e centenas de mulheres e crianças vietnamitas. Tal como as vidas norte-americanas perdidas contribuíram para o movimento contra a guerra, também contribuiu o crescente convencimento de que o que estava a suceder no Vietname era desumano e incorrecto. Agora o povo conhecia mais sobre a guerra, conhecia mais sobre as razões da guerra, começou a notar que lhe estavam a mentir, muitas destas coisas estão agora a suceder no Iraque.

Por exemplo, o incidente que provocou a guerra no Verão de 1964, o chamado incidente do Golfo de Tonkin, em que o Governo norte-americano disse: “O Vietname do Norte disparou contra destroyers norte-americanos”, etc, etc, “devemos ir para a guerra”. Bem, inteirámo-nos que era mentira e conheceram-se mais mentiras, uma mentira típica como esta: “só estamos a bombardear pontos militares”, mentira típica. Então foi a crescente consciência do povo que contribuiu para o movimento contra a guerra, os seus líderes imprimiram jornais alternativos, organizaram concentrações e conferências. Por outras palavras, educaram o povo norte-americano a respeito da guerra. Mas, inclusivamente mais importante que o trabalho que os líderes do movimento estavam a realizar, mais importante ainda, é que a realidade que estava a suceder no Vietname estava a chegar ao povo norte-americano.

Contracorriente: Bem, estávamos a falar do Vietname. Gostava que me falasse sobre os documentos do Pentágono, porque o meu amigo Weinglass disse-me que foi uma das testemunhas do julgamento.

HZ: Sim, admito-o, fui testemunha. Os documentos do Pentágono foi um dos mais interessantes da Guerra do Vietname, melhor, um dos episódios mais interessantes da história norte-americana, porque foi um acontecimento excepcional com alguém que tinha um alto cargo no governo e que, de repente, deu uma volta e expôs todos os segredos do governo: Daniel Ellsberg, com a ajuda de Tony Russo. Ambos trabalhavam para a RAND Corporation. A RAND Corporation é o que chamam um cérebro, um grupo de intelectuais contratados para trabalhar para o governo. Fornecem-lhe informações, por exemplo Anthony Russo, trabalhava com Daniel Ellsberg, cujo trabalho na RAND Corporation era interrogar prisioneiros vietcong. Quando os interrogava aprendeu uma coisa muito importante que mudou as suas ideias sobre a guerra. Deu-se conta que aquelas pessoas, que tinham sido soldados da Frente de Libertação Nacional do Vietname, sabiam porque estavam a lutar. Entendiam porque se fazia a guerra, enquanto os soldados do Exército do Vietname do Sul, que estavam a trabalhar com os Estados Unidos, não sabiam porque a faziam. Isto fê-lo mudar de ideias. Daniel Ellsberg era um graduado por Harvard, tinha várias licenciaturas, tinha trabalhado no Departamento de Estado, trabalhou na RAND Corporation com o Departamento de Defesa, havia sido marine no Vietname e, quando ali esteve, viu coisas que o perturbaram, sobre o que os Estados Unidos estavam a fazer no Vietname e decidiu que a guerra era incorrecta. Assim, quando regressou aos Estados Unidos e a RAND Corporation lhe deu um trabalho encomendado pelo Departamento de Defesa, que consistia em organizar a história da Guerra do Vietname, a história secreta, baseada em documentos do governo... Ele foi fazer este trabalho e, quando leu estes documentos, convenceu-se mais do que nunca, que os Estados Unidos estavam a fazer uma coisa errada no Vietname. Leu coisas assim: “O Governo do Vietname do Sul não é um Governo independente, é uma criação dos Estados Unidos”. Os Estados Unidos diziam que só estavam a bombardear pontos militares e ele encontrou evidências de que os bombardeamentos eram para destruir a moral da população civil. Essa experiência fê-lo decidir pegar naqueles papéis secretos, 7.000 páginas, fotocopiá-los e distribuí-los entre o povo. Foi assim que ele, e o seu amigo Anthony Russo resolveram fazer isso em segredo.

Contracorriente: E qual foi o seu papel no assunto?

HZ: Tinha que me tornar amigo de Daniel Ellsberg. Ele tinha saído da RAND Corporation, do governo, tinha começado a falar em comícios contra a guerra. Conheci-o num deles, tornámo-nos amigos, a mulher dele, da minha. Naquela altura eles viviam em Cambridge, na zona de Boston, onde eu vivia, e um dia estávamos, minha mulher e eu no seu apartamento em Cambridge e ele disse-me: “Tenho uma coisa a dizer-te, tenho uns papéis que ninguém conhece, queres vê-los”? E passou-me um monte de papéis, e eu li-os. Depois prenderam-no, e acusaram-no de violar a Lei de Espionagem, que diz que não se pode publicitar informação nem documentos que possam prejudicar a defesa nacional. Prenderam-no por isso, a ele e ao Anthony Russo, tendo sido condenado a 130 anos de cadeia. Parece uma loucura, 130 anos, 13 penas de 10 anos cada. Como o levaram a juízo em Los Angeles, a mim chamaram-me como testemunha de defesa, porque havia lido os documentos do Pentágono e, por isso, tinha de explicar ao Júri o que diziam esses documentos ; estive 5 horas a depor, contando-lhes a história da guerra do Vietname. Essas pessoas eram norte-americanos típicos, sabiam muito pouco da guerra, contei-lhes essa história, grande parte do que estava escrito nesses documentos . O que tinha de fazer era contar ao Júri a história da guerra e explicar-lhes porque é que esses papéis não eram prejudiciais para os Estados Unidos, para o povo dos Estados Unidos, mas eram uma vergonha para o Governo e era por isso que o governo os queria manter secretos.

Contracorriente: Vamos falar do 11 de Setembro. O que é que se passou depois? O que é que mudou nos Estados Unidos?

HZ: Como toda a gente sabe o 11 de Setembro foi um acontecimento catastrófico. Nada como aquilo havia sucedido antes nos Estados Unidos, nunca, em dia algum. Foi um safanão para o povo norte-americano e, claramente, os terroristas eram responsáveis, tudo bem. Bush acabara de ser eleito Presidente, era o novo Presidente. A pergunta era: Como vai Bush reagir a isto?, o qual imediatamente disse: “Vamos declarar guerra ao terrorismo”. Como se pode declarar guerra ao terrorismo? O terrorismo não é um país... Não se pode dizer: “Vou declarar guerra a este lugar, vou bombardeá-lo, e os terroristas serão vencidos”. Não há terroristas por todo o lado. De facto o próprio Governo dos Estados Unidos disse: “Há terroristas em muitos países do mundo, em 30 ou 40 lugares diferentes do mundo”.

Contracorriente: E mencionaram mais de 60.

HZ: Sim, estão sempre a mudar o número, mas o problema é que o terrorismo não é uma coisa que se possa combater com uma guerra. Na altura já estava claro, não para o povo norte-americano que estava a aceitar..., ou para a imprensa, que também estava a aceitar esta ideia da guerra contra o terrorismo, mas estava claro para muitos de nós, não passava de um mecanismo, um truque para permitir que o governo dos Estados Unidos fizesse o que já queria fazer antes do 11 de Setembro: aumentar o seu poder no Médio Oriente. Por isso, a primeira coisa que Bush faz é bombardear o Afeganistão. Milhares de pessoas morreram, milhares de cidadãos morreram, centenas de milhares de afegãos tiveram que abandonar as suas terras. Diz que está à procura de Osama bin Laden, que é a cabeça do terrorismo. Nunca o encontra, mas já morreu toda esta gente. Esta é a guerra contra o terrorismo. A guerra contra o terrorismo é absurda, porque se se analisar inteligentemente, não se pode lutar contra o terrorismo bombardeando este ou aquele país. A única forma de lidar com o terrorismo é formular a pergunta: quais são as causas do terrorismo, as raízes do terrorismo? O que é que motiva estes terroristas? Além do mais, esta não é a única experiência histórica com o terrorismo. O IRA, na Irlanda, cometeu actos terroristas e os britânicos responderam-lhes da mesma forma que Bush, com a força. Isso não deteve o IRA. Finalmente os ingleses tiveram que reconhecer que havia qualquer coisa mais por detrás desse terrorismo. Há uma grande afronta por trás do terrorismo, a afronta do IRA é que os britânicos estão a ocupar o seu país. Têm que se fazer qualquer coisa com respeito a isso, se querem resolver qualquer coisa no que diz respeito ao terrorismo.

Tomemos a situação de Israel, terrorismo, bombas suicidas. O governo israelense, Sharon, responde a isso da mesma forma que Bush, com a força. Para que serve? Isso detém as bombas suicidas? Não, aumentam. A única forma que Israel tem de deter o terrorismo, é pensar que tem de eliminar a causa do terrorismo, e esta causa é a ocupação dos territórios palestinos. Só isto vai parar o terrorismo. Por isso, para os Estados Unidos, a questão importante é o que move estes terroristas, e não é difícil dar-se conta de qual é: A política norte-americana no Médio Oriente, os exércitos de ocupação norte-americanos no Médio Oriente, o apoio dos Estados Unidos a Israel, que é muito importante para todos no Médio Oriente, as sanções que os Estados Unidos estavam a apoiar no Iraque, que consistiam em matar centenas de milhares de pessoas. Isto são ofensas, ofensas genuínas, ofensas reais. Por isso, se realmente o terrorismo os preocupa, têm de fazer qualquer coisa acerca destas ofensas, mas os Estados Unidos não querem fazer nada porque, então, teriam que mudar a sua política externa, teriam que ser um país diferente, retirar as suas tropas do Médio Oriente e deixar de apoiar Israel. Eles não querem fazer nada disso. Assim se desvia a atenção das pessoas, e esse desvio da atenção é a guerra contra o terrorismo.

Contracorriente: Estava a falar da política externa depois do 11 de Setembro. Qual o seu significado na sociedade norte-americano? Refiro-me à Lei Patriótica que suprimiu as conquistas obtidas pelos movimento cívicos. Há alguma repercussão nos Estados Unidos?

HZ: O que sucedeu depois do 11 de Setembro foi o que sempre acontece quando há uma crise e os Estados Unidos entram em guerra. O Governo diz ao povo: “Estamos numa crise, esta é uma situação especial, não podemos ter as mesmas liberdades, a mesma liberdade de expressão, a Constituição tem que ser posta de lado, a Declaração dos Direitos Fundamentais tem que ser posta de lado, porque esta é uma emergência”. Isto acontece sempre; sempre que há uma emergência o governo suprime a liberdade de expressão. Na Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos prenderam cerca de 1.000 pessoas que opinavam contra a guerra. Agora, com o 11 de Setembro, com a guerra contra o terrorismo, com esta crise, que é quase irreal porque há terrorismo em toda o mundo, mas artificial e em certo sentido engrandecido, exagerado, o governo começa a agir contra a Constituição norte-americana, aprisiona pessoas sem reconhecer os seus direitos constitucionais. A Constituição norte-americana não permite prender pessoas, mantê-las detidas e que nunca mais se ouça falar delas. Pressupõe-se que tenham advogados, pressupõe-se que tenham penas e que se saiba quais são essas penas, pressupõe-se que tenham julgamentos, audiências. Não só prendem milhares de pessoas, como não lhes fazem nenhum julgamento, não têm advogado. O Congresso aprovou o que se chama a Lei Patrióticas. É muito interessante que sempre dão a este tipo de leis nomes falsos: Leis Patriótica. A Lei Patriótica dá mais poder ao FBI para interferir na opinião privada, na vida privada das pessoas; Dá ao FBI o direito de verificar os antecedentes das pessoas, dá-lhes o direito de ir às bibliotecas e perguntar que livros se emprestaram, que tenham a ver com o Médio Oriente. Sim, homens do FBI visitaram bibliotecas perguntando quem pediu livros sobre o Islão. Que significa isto? Que alguém que esteja interessado no Islão é um potencial terrorista? É absurdo, mas é assim, o que isto fez foi criar um ambiente de medo, particularmente entre os que não são cidadãos, os que vivem nos Estados Unidos, mas não têm a sua cidadania. São objecto de todo o tipo de repressões, são mais vulneráveis que os cidadãos norte-americanos. Não têm os mesmos direitos. Há milhões de pessoas nos Estados Unidos que não têm a cidadania norte-americana, mas vivem aí e podem ser expulsos por dá cá aquela palha, com o simples estalido dos dedos do Procurador Geral; assim têm de ter medo.

Contracorriente: Estávamos a falar do período do Vietname. Qual é a sua avaliação das diferenças e similitudes entre o Vietname e o Iraque ?

HZ: Bom, há diferenças óbvias. No caso do Vietname, os Estados Unidos enfrentaram não só um movimento rebelde organizado no Sul, mas também um Governo real no Norte que apoiava o movimento rebelde no Sul. No Iraque, os Estados Unidos estão a enfrentar qualquer coisa que, na realidade, se parece mais ao que enfrentava no Vietname do Sul, o movimento guerrilheiro da resistência. Na Guerra do Vietname as baixas dos Estados Unidos foram maiores. A escala da luta, dos bombardeamentos, foi imensa no Vietname. No Vietname, os Estados Unidos perderam 50.000 soldados; no Iraque perderam até agora quase 1.000 soldados. Há diferenças, mas há semelhanças muito sérias. Há uma fundamental, a semelhança fundamental é que no Vietname, os Estados Unidos enviaram tropas em aviões, para o outro lado do mundo, atacar um pequeno país que não estava a ameaçar os Estados Unidos; exactamente a mesma coisa no Iraque. Aqui está este país gigante, os Estados Unidos, com 280 milhões de habitantes, a enviar um exército para o outro lado do mundo, ao Iraque que tem 25 milhões de habitantes, para o bombardear e invadir, e o Iraque não é uma ameaça para ninguém, quando muito para a sua própria gente, para mais ninguém. Esta é que é a semelhança fundamental entre as duas situações. Também há outras: em ambos os casos pode dizer-se que se disseram mentiras enormes ao povo norte-americano sobre o Vietname e agora sobre o Iraque. Também na Guerra do Vietname, o povo dos Estados Unidos começou, lentamente, a aperceber-se que lhe estavam a mentir e, também agora, começou a aperceber-se de que o tempo final é diferente, o tempo final para o Iraque chega mais rapidamente do que para o Vietname. Quanto ao Vietname, passaram-se vários anos até que as pessoas começassem a pensar que a guerra era incorrecta, e que tudo o que lhe diziam era enganoso, isso levou tempo. Na Guerra do Iraque foi muito mais rápido. Além do mais, só se passou um ano desde que os Estados Unidos começaram a Guerra com o Iraque e o povo norte-americano já sabe que toda aquela estória sobre as armas de destruição maciça era mentira e o movimento contra a guerra nos Estados Unidos cresceu mais rapidamente quanto à guerra do Iraque do que quanto à do Vietname.

Contracorriente: Mais rápido, mas não com a mesma força.

HZ: Não tão grande, nem ainda tão amplo.

Entrevistar: Isso porquê?

HZ: É verdade. É importante entender porque foi lento o povo norte-americano a compreender o que está a suceder no Iraque, porque, apesar de tudo, muitos americanos ainda pensam que foram encontradas armas de destruição maciça. Coisa totalmente falsa. A razão é que os media estão a ser mais controlados agora do que aquando da Guerra do Vietname. Os canais de televisão, os jornais estão agora muito mais concentrados nas mãos de algumas corporações poderosas... Onde procuram os norte-americanos as notícias, a informação? De facto, houve recentemente uma sondagem em que perguntaram aos norte-americanos que canal de televisão vêem e o que acreditam disto e daquilo. Verificaram que a maioria das pessoas vêem a Fox News, que é o canal da direita e o de maior audiência e, entre aqueles que viam a Fox News, 80% ainda acreditava que se tinham encontrado armas de destruição maciça no Iraque. Isto mostra o poder que têm os meios de comunicação e é contra isto que temos de lutar, nós e o movimento contra a guerra.

Contracorriente: Temos estado a falar sobre o Vietname e o Iraque. A acção militar dos Estados Unidos foi levada a cabo em nome da democracia e da liberdade. Porquê?

HZ: Como se pode persuadir o povo norte-americano a enviar tropas a 5.000 milhas? Como se pode persuadir o povo norte-americano a invadir uma pequena ilha? Tens de criar palavras-de-ordem... Se leres George Orwell, 1984 , vês como para criar um estado totalitário se usam palavras e frases que oprimem a mente. Então, o Governo diz que estamos a lutar pela liberdade, pela democracia e, inclusivamente, dá nome às guerras, chama-lhes: Operação Liberdade, Operação Preservação da Liberdade. Os norte-americanos acreditam na liberdade e na democracia. Que digo? Toda a gente acredita na liberdade e na democracia. Dizem aos norte-americanos que estão a lutar pela liberdade e pela democracia. Ora bem, aí está uma coisa mais, que creio ser importante: a memória da Segunda Guerra Mundial, ainda muito forte nos Estados Unidos, porque é a guerra geralmente aceite como justa, porque foi realmente pela liberdade e pela justiça, porque foi uma guerra contra o fascismo. A verdade é que a Segunda Guerra Mundial não foi estrita e simplesmente uma guerra pela democracia. Ao fim e ao cabo, quem estava a lutar contra o fascismo? O Império britânico, o império francês, o império norte-americano e a Rússia de Stalin. Estavam mais interessados na democracia e na liberdade? Não, tinham outros interesses. Mas os interesses naquele momento coincidiam com os interesses das pessoas que queriam livrar-se do fascismo. A Segunda Guerra Mundial ainda está muito viva nos Estados Unidos, chamam-lhe a Guerra Boa. Por isso o Governo e a imprensa fazem comparações com a Segunda Guerra Mundial e dizem: “Na Segunda Guerra Mundial lutámos contra Hitler”. Sadam Hussein é Hitler, outro Hitler. Na Segunda Guerra Mundial disseram: “Devemos lutar pela democracia”. Agora também. Fazem estas comparações e estas analogias para apanhar os elementos morais da Segunda Guerra Mundial e transportá-los para todas as guerras incorrectas e injustas que temos feito desde o final daquela guerra.

Contracorriente: E que há com Cuba? A política dos Estados Unidos, desde o princípio, era a de estimular uma mudança de regime em Cuba, mas agora falam abertamente de o fazer.

HZ: Sempre falaram de mudanças de regime e é interessante, os norte-americanos não aprendem com a história que se ensina nas escolas norte-americanas, não aprendem com a história das mudanças de regime. Porque os Estados Unidos têm uma história de mudanças de regime e a questão é quando os Estados Unidos se envolvem em mudanças de regime, qual é o resultado? Podemos regressar a 1898, podemos voltar à guerra contra a Espanha. Isso era uma mudança de regime: Os Estados Unidos desfizeram-se da Espanha. Isso não trouxe a liberdade a Cuba, trouxe o poder norte-americano. É verdade que os Estados Unidos trataram de mudar regimes em todo o mundo, incluindo regimes democráticos, eleitos, no Chile e Guatemala. Muda o regime e qual é o resultado? Ditadura, morte, mas o povo norte-americano não conhece esta história. Os Estados Unidos, como diz, desde sempre quiseram mudar o regime em Cuba. Mas quando se envolveu numa mudança de regime o que esteve por detrás disso? A liberdade e a democracia? Não, o que sempre esteve por detrás disso é os Estados Unidos quererem que o poder seja de governos que estejam submetidos aos seus interesses. Durante a Guerra Fria diziam que queriam derrubar governos comunistas, mas não só governos comunistas, porque o Chile não tinha um governo comunista e a Guatemala tão-pouco. Não querem qualquer governo que não coopere com os Estados Unidos. Assim, o problema com Cuba não é ser marxista, comunista ou socialista. O problema é que Cuba insiste em ser independente, insiste em não se submeter aos Estados Unidos, esse é o problema de Cuba. E o Governo dos Estados Unidos não diz ao povo o que a Revolução Cubana fez pelos cubanos, a saúde, a educação, a cultura. Nada dizem sobre isso e criam a imagem de que Cuba tem um governo que deve ser derrubado. E agora estão mais agressivos, porque querem agradar aos cubanos da Florida.

Contracorriente: Mas antes, quando as pessoas da Florida, quero dizer os cubano-americanos não votavam nas eleições, o governo dos Estados Unidos já tinha uma política de mudança de regime e ninguém votava nas eleições a seguir a 59, a princípio.

HZ: Claro, não é a única razão, mas é a que se deu desde que eles começaram a votar na Florida.

Contracorriente: Sabe que a partir do território dos Estados Unidos, especialmente a partir da Florida, tem havido actividades terroristas contra Cuba desde início, mas agora, Bush diz que aqueles que abrigam um terrorista são eles próprios terroristas.

HZ: Pois, essa é uma forma muito conveniente para atacar qualquer governo que os Estados Unidos queiram atacar, dizer que abrigam terroristas. Então, se vai atacar qualquer governo que abrigue terroristas, tem que atacar os Estados Unidos. Os Estados Unidos albergou terroristas... e participou em actos terroristas. Isto é uma coisa que frequentemente se esquece quando se fala de terroristas. Participaram, como disse, em actos secretos de terrorismo contra Cuba, actos secretos de terrorismo contra a Nicarágua. Durante o governo de Reagan fez-se um acto secreto de terrorismo no Líbano, em que a CIA preparou o carro bomba para explodir numa mesquita em que morreram 80 pessoas. Mas sobre isto ainda quero acrescentar: Há actos de terrorismo cometidos por indivíduos ou grupos que se fanatizam por se sentirem ofendidos, mas os governos que praticam actos terroristas fazem-no em maior escala, porque têm mais recursos, muito mais poder. Os actos terroristas cometidos pelos governos custam muito mais vidas humanas que os actos individuais de terrorismo.

Contracorriente: Temos estado a falar de história e de política. Porque não falamos um sobre si, como escritor de obras de teatro? Marx in Soho , porquê?

HZ: Quando se derrubou a União Soviética em 90, 91, nos Estados Unidos todos disseram: “Ah, isto significa que o socialismo morreu, é o fim do socialismo, isto prova que o marxismo é um fracasso.” Eu não acreditei, primeiro porque não considerava que a União Soviética representasse o verdadeiro socialismo. Havia muita ditadura, muita burocracia, muita supressão da liberdade na União Soviética, por isso, para mim, o marxismo não está morto, agora que já não existe a União Soviética. A ideia de socialismo é para mim muito importante e é uma ideia que devia manter-se viva, por isso pensei como pôr isso em cena. Tinha escrito algumas obras de teatro antes, mas como podia pôr esta em cena? Bom, vou trazer o Marx para que fale, trá-lo-ei donde quer que esteja. Quem sabe onde está? Ele vivia no Soho de Londres, mas as pessoas que o trazem de volta, suponho que um comité, cometem um erro e em vez de o mandar para o Soho de Londres, envia-o para o Soho de Nova Iorque. É uma obra de teatro de um só personagem. Aparece o Karl Marx e diz: Estou aqui para explicar o que é realmente o marxismo e digo-lhes que a União Soviética não era verdadeiramente marxista e que as ideias marxistas sobre o capitalismo são válidas até porque agora estou em Nova Iorque e vejo pessoas vivendo na rua, vejo como as empresas controlam o governo, vejo como as pessoas estão absolutamente controladas pela televisão e a propaganda do governo e, apesar disso, como há diferenças de classe. Sim, as ideias marxistas estão vivas ainda. Quer dizer que o derrube da União Soviética não significa o derrube do socialismo, a ideia de socialismo continua a ser uma boa ideia; que a riqueza do mundo deveria ser distribuída equitativamente entre todos e que o socialismo não significa ditadura, mas liberdade, liberdade de expressão e Marx também quer dizer que o capitalismo é absolutamente desastroso para a maioria das pessoas e para a sociedade, por isso deve ser substituído por uma sociedade socialista que seja verdadeiramente democrática.

Contracorriente: Bom, foi uma grande honra e um grande prazer estar aqui com o senhor. Obrigado pelos seus pensamentos, pelas suas respostas, mas sobretudo por estar aqui.

HZ: Muito Obrigado, para mim foi muito estimulante estar neste momento em Cuba.

Os originais podem ser encontrados em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=7998
ou http://lahaine.org/b2/articulo.php?p=4974&more=1&c=1
Tradução de José Paulo Gascão.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

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