domingo, 28 de dezembro de 2008

Uma entrevista de 2004.

Entrevista de Howard Zinn
a Miguel Álvarez Sánchez, de Contracorriente
Entrevista originalmente publica no dia
23-11-2004

Howard Zinn. Contracorriente: Vamos começar por falar de livros.

Howard Zinn: Está bem.

Contracorriente.: Porque escreveu a História popular dos Estados Unidos ?

HZ: Escrevi-a porque estava a dar aulas de História, aulas de História Norte-americana, e procurava um livro que representasse o meu ponto de vista. Isto foi nos anos 70, depois dos movimentos sociais dos anos 60 e desses movimentos sociais criarem o desejo por um ponto de vista que fosse diferente do dos livros tradicionais, ortodoxos. Foi depois do movimento pelos direitos cívicos, depois da Guerra do Vietname, que as pessoas se tornaram mais críticas da política interna, da política externa; mas não havia livros de História Geral dos Estados Unidos que reflectissem essa nova ideia, essa nova crítica. Então, eu procurava um livro assim, as pessoas perguntavam-me se conhecia algum, pessoas que tinham participado no movimento dos anos 60 pediam-me que lhes recomendasse um livro que tivesse um ponto de vista radical e pensei, não, na realidade não sei de nenhum; então decidi: “Vou escrevê-lo”. Às vezes é por isso que se escrevem livros, procura-se um livro, não há e escreve-se. Escrevi-o porque queria contar a história dos Estados Unidos, não do ponto de vista dos presidentes, nem do Supremo Tribunal, nem do Congresso; esta era a forma tradicional, a história tradicional... Olhe, é que tudo se baseia nos presidentes. É irónico porque se se pressupõe que somos uma democracia, não se pode pressupor que devemos exaltar o líder máximo; mas aqui os historiadores diziam: Oh, devemos falar dos próceres, sobre George Washington, sobre John Adams, devemos falar sobre Jefferson e Lincoln, etc, etc. E sobre as pessoas comuns? Todos estes historiadores ortodoxos contam a história do desenvolvimento económico norte-americano mas sempre a partir do ponto de vista dos heróis da indústria: Carnegie Rockfeller, Morgan; foram eles que fizeram a grandeza dos Estados Unidos. Mas estes historiadores não dizem nada sobre as pessoas que trabalharam na refinaria de petróleo de Rockfeller, as pessoas que trabalharam nas siderurgias de Carnegie, as pessoas que trabalharam nos caminho de ferro. Imigrantes irlandeses, imigrantes chineses que trabalharam muitas horas, com um salário baixo e muitos morreram. Estas pessoas foram omitidas da história e eu criei-me numa família de classe humilde.

Comecei a trabalhar aos 18 anos num estaleiro naval. Normalmente, nas famílias da classe média e, naturalmente, nas famílias da classe alta, quando se tem 18 anos, vai-se para a universidade, mas quem pertence a uma família da classe humilde vai trabalhar. Fui trabalhar para um estaleiro e aí comecei a interessar-me pela pessoas trabalhadoras, pela leitura, e comecei, com outros jovens, a organizar os trabalhadores do estaleiro, de modo que tomei consciência e interessei-me pelo movimento dos trabalhadores. Por isso queria escrever a história dos Estados Unidos trazendo à luz os trabalhadores, as lutas operárias, as greves... A maioria dos jovens que vão para a escola nos Estados Unidos não aprendem que houve grandes greves, que foram as lutas operárias que ganharam a implantação da jornada laboral de 8 horas. Se não se conhecem essas greves, essas lutas, pensar-se-á que aquela jornada foi estabelecida pelo Congresso, o Presidente ou, quem sabe?, Deus. Mas não, esta ganhou-se graças às lutas dos trabalhadores, daí eu querer escrever sobre isso. Também os negros foram omitidos, porque embora se falasse de escravatura, realmente não se falava do ponto de vista dos escravos e, inclusivamente, nos anos 30 até saiu um livro famoso de História Norte-americana, escrito por dois famosíssimos professores de Harvard e de Columbia, em que se dizia que o esclavagismo foi útil porque preparou os negros para a liberdade.

Contracorriente: Quem é Howard Zinn? É um radical?

HZ: Espero que sim, mas a palavra radical é frequentemente mal utilizada. Nos Estados Unidos tem-se uma ideia muito vaga do que é ser radical e, por vezes usam a palavra radical como extremista; para mim a palavra radical significa chegar à raiz do problema, mais profundamente que a crítica comum. Por exemplo, esta é a diferença entre um ponto de vista liberal e um ponto de vista radical...

Contracorriente: Qual é a diferença?

Dou-lhe alguns exemplos da diferença: de um ponto de vista liberal diria: “Vamos dar melhor seguro de saúde a mais pessoas; vamos, talvez, dar mais incentivos aos empresários para que proporcionem mais benefícios de saúde aos seus empregados”. De um ponto de vista radical diria: “não vamos mais através dos empresários nem das companhias de seguros, vamos pôr a saúde grátis para todos”. Agora outro exemplo da actualidade. De um ponto de vista é: “Bom a guerra do Iraque não está a ir bem, há uma forma melhor de combater, vamos envolver mais países...”

Contracorriente: Essa é a abordagem de Kerry.

HZ: Exactamente, essa é a abordagem de Kerry: “Vamos envolver as Nações Unidas”. A lógica é extraordinária, se a guerra é imoral, vamos deixar que mais pessoas se unam a esta imoralidade. De um ponto de vista radical, se a guerra é imoral, saiam do Iraque, parem a guerra. Enfrentámos esta mesma situação durante a Guerra do Vietname...

Contracorriente: Diga-nos qualquer coisa sobre o período do Vietname. O que significou para o povo norte-americano?

HZ: Bom, para os norte-americanos, o período do Vietname foi algo sem precedentes na história norte-americana. Nada como isto havia acontecido antes, com o que quero dizer que não houve movimento contra a guerra que fosse tão amplo, tão grande, como no tempo do Vietname. Nas guerras levadas a cabo pelos Estados Unidos sempre tivemos dissidentes, rebeldes que protestavam, inclusivamente na guerra de independência. Todos dizem que foi uma guerra maravilhosa, uma boa guerra, mas, inclusivamente aí, houve muitos norte-americanos que não acreditavam que a guerra revolucionária era para eles, os negros não acreditavam que era para eles, os índios tão-pouco. Os soldados pobres que se uniram ao exército revolucionário não estavam seguros de que esta guerra os beneficiaria, porque sabiam que havia uma classe colonial rica e que, provavelmente, seria a mais beneficiada. Sim, houve ideias e acções dissidentes durante a guerra revolucionária, e é assim em todas as guerras. Na guerra mexicana de 1846-48 em que os Estados Unidos ocuparam quase metade do México, houve soldados norte-americanos que desertaram, se negaram a combater e por aí afora. Na Primeira Guerra Mundial houve uma grande oposição e inclusivamente na Segunda Guerra Mundial que é a chamada “guerra boa”, inclusivamente nela, houve quem dissesse que a guerra não era a solução. Mas nunca houve um movimento tão grande, tão forte, contra uma guerra, como o movimento contra a Guerra do Vietname. Começou lento, começou pequeno; De facto, no início só pequenas manifestações foram levadas a cabo e nós dizíamos: “Nunca vamos ganhar”; “Nunca vamos poder travar o governo dos Estados Unidos”; O governo dos Estados Unidos é muito poderoso”; “Esta é a maior missão militar na Terra, como vamos detê-la ?”; mas o movimento cresceu, cresceu, cresceu.

Contracorriente: Porquê? Porque os norte-americanos estavam a morrer, estavam a perder vidas? É essa a razão?

HZ: Creio que havia muitas razões, sim, porque os norte-americanos estavam a morrer, mas não creio que essa tivesse sido a única razão, porque se tivesse sido a única, isso significaria que aos norte-americanos não lhes importava o que sucedia ao povo do Vietname. E se é certo que ao governo dos Estados Unidos não lhe importava o que sucedia ao povo do Vietname, de facto ao governo também não lhe importava o que sucedia aos norte-americanos. Mas creio que sim, as baixas, as crescentes baixas de norte-americanos no Vietname tiveram um grande efeito no público norte-americano. Mas houve algo mais, foi que o povo norte-americano tornou-se mais e mais consciente de que os Estados Unidos estavam a fazer coisas terríveis no Vietname. Começaram a ver fotografias de marines na televisão, deitando fogo às choças, nas aldeias; viam um marine americano, corpulento, apontar uma pistola a uma pequena mulher vietnamita acompanhada dos filhos. Foi algo que comoveu as pessoas, e depois inteiraram-se do massacre de My Lay. Inteiraram-se um ano mais tarde porque a imprensa é sempre mais lenta a contar estas coisas, porque o massacre de My Lay foi em 1968 e só em 1969 é que saiu na imprensa norte-americana. Então, o povo norte-americano viu fotografias horríveis de soldados norte-americanos a assassinar centenas e centenas de mulheres e crianças vietnamitas. Tal como as vidas norte-americanas perdidas contribuíram para o movimento contra a guerra, também contribuiu o crescente convencimento de que o que estava a suceder no Vietname era desumano e incorrecto. Agora o povo conhecia mais sobre a guerra, conhecia mais sobre as razões da guerra, começou a notar que lhe estavam a mentir, muitas destas coisas estão agora a suceder no Iraque.

Por exemplo, o incidente que provocou a guerra no Verão de 1964, o chamado incidente do Golfo de Tonkin, em que o Governo norte-americano disse: “O Vietname do Norte disparou contra destroyers norte-americanos”, etc, etc, “devemos ir para a guerra”. Bem, inteirámo-nos que era mentira e conheceram-se mais mentiras, uma mentira típica como esta: “só estamos a bombardear pontos militares”, mentira típica. Então foi a crescente consciência do povo que contribuiu para o movimento contra a guerra, os seus líderes imprimiram jornais alternativos, organizaram concentrações e conferências. Por outras palavras, educaram o povo norte-americano a respeito da guerra. Mas, inclusivamente mais importante que o trabalho que os líderes do movimento estavam a realizar, mais importante ainda, é que a realidade que estava a suceder no Vietname estava a chegar ao povo norte-americano.

Contracorriente: Bem, estávamos a falar do Vietname. Gostava que me falasse sobre os documentos do Pentágono, porque o meu amigo Weinglass disse-me que foi uma das testemunhas do julgamento.

HZ: Sim, admito-o, fui testemunha. Os documentos do Pentágono foi um dos mais interessantes da Guerra do Vietname, melhor, um dos episódios mais interessantes da história norte-americana, porque foi um acontecimento excepcional com alguém que tinha um alto cargo no governo e que, de repente, deu uma volta e expôs todos os segredos do governo: Daniel Ellsberg, com a ajuda de Tony Russo. Ambos trabalhavam para a RAND Corporation. A RAND Corporation é o que chamam um cérebro, um grupo de intelectuais contratados para trabalhar para o governo. Fornecem-lhe informações, por exemplo Anthony Russo, trabalhava com Daniel Ellsberg, cujo trabalho na RAND Corporation era interrogar prisioneiros vietcong. Quando os interrogava aprendeu uma coisa muito importante que mudou as suas ideias sobre a guerra. Deu-se conta que aquelas pessoas, que tinham sido soldados da Frente de Libertação Nacional do Vietname, sabiam porque estavam a lutar. Entendiam porque se fazia a guerra, enquanto os soldados do Exército do Vietname do Sul, que estavam a trabalhar com os Estados Unidos, não sabiam porque a faziam. Isto fê-lo mudar de ideias. Daniel Ellsberg era um graduado por Harvard, tinha várias licenciaturas, tinha trabalhado no Departamento de Estado, trabalhou na RAND Corporation com o Departamento de Defesa, havia sido marine no Vietname e, quando ali esteve, viu coisas que o perturbaram, sobre o que os Estados Unidos estavam a fazer no Vietname e decidiu que a guerra era incorrecta. Assim, quando regressou aos Estados Unidos e a RAND Corporation lhe deu um trabalho encomendado pelo Departamento de Defesa, que consistia em organizar a história da Guerra do Vietname, a história secreta, baseada em documentos do governo... Ele foi fazer este trabalho e, quando leu estes documentos, convenceu-se mais do que nunca, que os Estados Unidos estavam a fazer uma coisa errada no Vietname. Leu coisas assim: “O Governo do Vietname do Sul não é um Governo independente, é uma criação dos Estados Unidos”. Os Estados Unidos diziam que só estavam a bombardear pontos militares e ele encontrou evidências de que os bombardeamentos eram para destruir a moral da população civil. Essa experiência fê-lo decidir pegar naqueles papéis secretos, 7.000 páginas, fotocopiá-los e distribuí-los entre o povo. Foi assim que ele, e o seu amigo Anthony Russo resolveram fazer isso em segredo.

Contracorriente: E qual foi o seu papel no assunto?

HZ: Tinha que me tornar amigo de Daniel Ellsberg. Ele tinha saído da RAND Corporation, do governo, tinha começado a falar em comícios contra a guerra. Conheci-o num deles, tornámo-nos amigos, a mulher dele, da minha. Naquela altura eles viviam em Cambridge, na zona de Boston, onde eu vivia, e um dia estávamos, minha mulher e eu no seu apartamento em Cambridge e ele disse-me: “Tenho uma coisa a dizer-te, tenho uns papéis que ninguém conhece, queres vê-los”? E passou-me um monte de papéis, e eu li-os. Depois prenderam-no, e acusaram-no de violar a Lei de Espionagem, que diz que não se pode publicitar informação nem documentos que possam prejudicar a defesa nacional. Prenderam-no por isso, a ele e ao Anthony Russo, tendo sido condenado a 130 anos de cadeia. Parece uma loucura, 130 anos, 13 penas de 10 anos cada. Como o levaram a juízo em Los Angeles, a mim chamaram-me como testemunha de defesa, porque havia lido os documentos do Pentágono e, por isso, tinha de explicar ao Júri o que diziam esses documentos ; estive 5 horas a depor, contando-lhes a história da guerra do Vietname. Essas pessoas eram norte-americanos típicos, sabiam muito pouco da guerra, contei-lhes essa história, grande parte do que estava escrito nesses documentos . O que tinha de fazer era contar ao Júri a história da guerra e explicar-lhes porque é que esses papéis não eram prejudiciais para os Estados Unidos, para o povo dos Estados Unidos, mas eram uma vergonha para o Governo e era por isso que o governo os queria manter secretos.

Contracorriente: Vamos falar do 11 de Setembro. O que é que se passou depois? O que é que mudou nos Estados Unidos?

HZ: Como toda a gente sabe o 11 de Setembro foi um acontecimento catastrófico. Nada como aquilo havia sucedido antes nos Estados Unidos, nunca, em dia algum. Foi um safanão para o povo norte-americano e, claramente, os terroristas eram responsáveis, tudo bem. Bush acabara de ser eleito Presidente, era o novo Presidente. A pergunta era: Como vai Bush reagir a isto?, o qual imediatamente disse: “Vamos declarar guerra ao terrorismo”. Como se pode declarar guerra ao terrorismo? O terrorismo não é um país... Não se pode dizer: “Vou declarar guerra a este lugar, vou bombardeá-lo, e os terroristas serão vencidos”. Não há terroristas por todo o lado. De facto o próprio Governo dos Estados Unidos disse: “Há terroristas em muitos países do mundo, em 30 ou 40 lugares diferentes do mundo”.

Contracorriente: E mencionaram mais de 60.

HZ: Sim, estão sempre a mudar o número, mas o problema é que o terrorismo não é uma coisa que se possa combater com uma guerra. Na altura já estava claro, não para o povo norte-americano que estava a aceitar..., ou para a imprensa, que também estava a aceitar esta ideia da guerra contra o terrorismo, mas estava claro para muitos de nós, não passava de um mecanismo, um truque para permitir que o governo dos Estados Unidos fizesse o que já queria fazer antes do 11 de Setembro: aumentar o seu poder no Médio Oriente. Por isso, a primeira coisa que Bush faz é bombardear o Afeganistão. Milhares de pessoas morreram, milhares de cidadãos morreram, centenas de milhares de afegãos tiveram que abandonar as suas terras. Diz que está à procura de Osama bin Laden, que é a cabeça do terrorismo. Nunca o encontra, mas já morreu toda esta gente. Esta é a guerra contra o terrorismo. A guerra contra o terrorismo é absurda, porque se se analisar inteligentemente, não se pode lutar contra o terrorismo bombardeando este ou aquele país. A única forma de lidar com o terrorismo é formular a pergunta: quais são as causas do terrorismo, as raízes do terrorismo? O que é que motiva estes terroristas? Além do mais, esta não é a única experiência histórica com o terrorismo. O IRA, na Irlanda, cometeu actos terroristas e os britânicos responderam-lhes da mesma forma que Bush, com a força. Isso não deteve o IRA. Finalmente os ingleses tiveram que reconhecer que havia qualquer coisa mais por detrás desse terrorismo. Há uma grande afronta por trás do terrorismo, a afronta do IRA é que os britânicos estão a ocupar o seu país. Têm que se fazer qualquer coisa com respeito a isso, se querem resolver qualquer coisa no que diz respeito ao terrorismo.

Tomemos a situação de Israel, terrorismo, bombas suicidas. O governo israelense, Sharon, responde a isso da mesma forma que Bush, com a força. Para que serve? Isso detém as bombas suicidas? Não, aumentam. A única forma que Israel tem de deter o terrorismo, é pensar que tem de eliminar a causa do terrorismo, e esta causa é a ocupação dos territórios palestinos. Só isto vai parar o terrorismo. Por isso, para os Estados Unidos, a questão importante é o que move estes terroristas, e não é difícil dar-se conta de qual é: A política norte-americana no Médio Oriente, os exércitos de ocupação norte-americanos no Médio Oriente, o apoio dos Estados Unidos a Israel, que é muito importante para todos no Médio Oriente, as sanções que os Estados Unidos estavam a apoiar no Iraque, que consistiam em matar centenas de milhares de pessoas. Isto são ofensas, ofensas genuínas, ofensas reais. Por isso, se realmente o terrorismo os preocupa, têm de fazer qualquer coisa acerca destas ofensas, mas os Estados Unidos não querem fazer nada porque, então, teriam que mudar a sua política externa, teriam que ser um país diferente, retirar as suas tropas do Médio Oriente e deixar de apoiar Israel. Eles não querem fazer nada disso. Assim se desvia a atenção das pessoas, e esse desvio da atenção é a guerra contra o terrorismo.

Contracorriente: Estava a falar da política externa depois do 11 de Setembro. Qual o seu significado na sociedade norte-americano? Refiro-me à Lei Patriótica que suprimiu as conquistas obtidas pelos movimento cívicos. Há alguma repercussão nos Estados Unidos?

HZ: O que sucedeu depois do 11 de Setembro foi o que sempre acontece quando há uma crise e os Estados Unidos entram em guerra. O Governo diz ao povo: “Estamos numa crise, esta é uma situação especial, não podemos ter as mesmas liberdades, a mesma liberdade de expressão, a Constituição tem que ser posta de lado, a Declaração dos Direitos Fundamentais tem que ser posta de lado, porque esta é uma emergência”. Isto acontece sempre; sempre que há uma emergência o governo suprime a liberdade de expressão. Na Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos prenderam cerca de 1.000 pessoas que opinavam contra a guerra. Agora, com o 11 de Setembro, com a guerra contra o terrorismo, com esta crise, que é quase irreal porque há terrorismo em toda o mundo, mas artificial e em certo sentido engrandecido, exagerado, o governo começa a agir contra a Constituição norte-americana, aprisiona pessoas sem reconhecer os seus direitos constitucionais. A Constituição norte-americana não permite prender pessoas, mantê-las detidas e que nunca mais se ouça falar delas. Pressupõe-se que tenham advogados, pressupõe-se que tenham penas e que se saiba quais são essas penas, pressupõe-se que tenham julgamentos, audiências. Não só prendem milhares de pessoas, como não lhes fazem nenhum julgamento, não têm advogado. O Congresso aprovou o que se chama a Lei Patrióticas. É muito interessante que sempre dão a este tipo de leis nomes falsos: Leis Patriótica. A Lei Patriótica dá mais poder ao FBI para interferir na opinião privada, na vida privada das pessoas; Dá ao FBI o direito de verificar os antecedentes das pessoas, dá-lhes o direito de ir às bibliotecas e perguntar que livros se emprestaram, que tenham a ver com o Médio Oriente. Sim, homens do FBI visitaram bibliotecas perguntando quem pediu livros sobre o Islão. Que significa isto? Que alguém que esteja interessado no Islão é um potencial terrorista? É absurdo, mas é assim, o que isto fez foi criar um ambiente de medo, particularmente entre os que não são cidadãos, os que vivem nos Estados Unidos, mas não têm a sua cidadania. São objecto de todo o tipo de repressões, são mais vulneráveis que os cidadãos norte-americanos. Não têm os mesmos direitos. Há milhões de pessoas nos Estados Unidos que não têm a cidadania norte-americana, mas vivem aí e podem ser expulsos por dá cá aquela palha, com o simples estalido dos dedos do Procurador Geral; assim têm de ter medo.

Contracorriente: Estávamos a falar do período do Vietname. Qual é a sua avaliação das diferenças e similitudes entre o Vietname e o Iraque ?

HZ: Bom, há diferenças óbvias. No caso do Vietname, os Estados Unidos enfrentaram não só um movimento rebelde organizado no Sul, mas também um Governo real no Norte que apoiava o movimento rebelde no Sul. No Iraque, os Estados Unidos estão a enfrentar qualquer coisa que, na realidade, se parece mais ao que enfrentava no Vietname do Sul, o movimento guerrilheiro da resistência. Na Guerra do Vietname as baixas dos Estados Unidos foram maiores. A escala da luta, dos bombardeamentos, foi imensa no Vietname. No Vietname, os Estados Unidos perderam 50.000 soldados; no Iraque perderam até agora quase 1.000 soldados. Há diferenças, mas há semelhanças muito sérias. Há uma fundamental, a semelhança fundamental é que no Vietname, os Estados Unidos enviaram tropas em aviões, para o outro lado do mundo, atacar um pequeno país que não estava a ameaçar os Estados Unidos; exactamente a mesma coisa no Iraque. Aqui está este país gigante, os Estados Unidos, com 280 milhões de habitantes, a enviar um exército para o outro lado do mundo, ao Iraque que tem 25 milhões de habitantes, para o bombardear e invadir, e o Iraque não é uma ameaça para ninguém, quando muito para a sua própria gente, para mais ninguém. Esta é que é a semelhança fundamental entre as duas situações. Também há outras: em ambos os casos pode dizer-se que se disseram mentiras enormes ao povo norte-americano sobre o Vietname e agora sobre o Iraque. Também na Guerra do Vietname, o povo dos Estados Unidos começou, lentamente, a aperceber-se que lhe estavam a mentir e, também agora, começou a aperceber-se de que o tempo final é diferente, o tempo final para o Iraque chega mais rapidamente do que para o Vietname. Quanto ao Vietname, passaram-se vários anos até que as pessoas começassem a pensar que a guerra era incorrecta, e que tudo o que lhe diziam era enganoso, isso levou tempo. Na Guerra do Iraque foi muito mais rápido. Além do mais, só se passou um ano desde que os Estados Unidos começaram a Guerra com o Iraque e o povo norte-americano já sabe que toda aquela estória sobre as armas de destruição maciça era mentira e o movimento contra a guerra nos Estados Unidos cresceu mais rapidamente quanto à guerra do Iraque do que quanto à do Vietname.

Contracorriente: Mais rápido, mas não com a mesma força.

HZ: Não tão grande, nem ainda tão amplo.

Entrevistar: Isso porquê?

HZ: É verdade. É importante entender porque foi lento o povo norte-americano a compreender o que está a suceder no Iraque, porque, apesar de tudo, muitos americanos ainda pensam que foram encontradas armas de destruição maciça. Coisa totalmente falsa. A razão é que os media estão a ser mais controlados agora do que aquando da Guerra do Vietname. Os canais de televisão, os jornais estão agora muito mais concentrados nas mãos de algumas corporações poderosas... Onde procuram os norte-americanos as notícias, a informação? De facto, houve recentemente uma sondagem em que perguntaram aos norte-americanos que canal de televisão vêem e o que acreditam disto e daquilo. Verificaram que a maioria das pessoas vêem a Fox News, que é o canal da direita e o de maior audiência e, entre aqueles que viam a Fox News, 80% ainda acreditava que se tinham encontrado armas de destruição maciça no Iraque. Isto mostra o poder que têm os meios de comunicação e é contra isto que temos de lutar, nós e o movimento contra a guerra.

Contracorriente: Temos estado a falar sobre o Vietname e o Iraque. A acção militar dos Estados Unidos foi levada a cabo em nome da democracia e da liberdade. Porquê?

HZ: Como se pode persuadir o povo norte-americano a enviar tropas a 5.000 milhas? Como se pode persuadir o povo norte-americano a invadir uma pequena ilha? Tens de criar palavras-de-ordem... Se leres George Orwell, 1984 , vês como para criar um estado totalitário se usam palavras e frases que oprimem a mente. Então, o Governo diz que estamos a lutar pela liberdade, pela democracia e, inclusivamente, dá nome às guerras, chama-lhes: Operação Liberdade, Operação Preservação da Liberdade. Os norte-americanos acreditam na liberdade e na democracia. Que digo? Toda a gente acredita na liberdade e na democracia. Dizem aos norte-americanos que estão a lutar pela liberdade e pela democracia. Ora bem, aí está uma coisa mais, que creio ser importante: a memória da Segunda Guerra Mundial, ainda muito forte nos Estados Unidos, porque é a guerra geralmente aceite como justa, porque foi realmente pela liberdade e pela justiça, porque foi uma guerra contra o fascismo. A verdade é que a Segunda Guerra Mundial não foi estrita e simplesmente uma guerra pela democracia. Ao fim e ao cabo, quem estava a lutar contra o fascismo? O Império britânico, o império francês, o império norte-americano e a Rússia de Stalin. Estavam mais interessados na democracia e na liberdade? Não, tinham outros interesses. Mas os interesses naquele momento coincidiam com os interesses das pessoas que queriam livrar-se do fascismo. A Segunda Guerra Mundial ainda está muito viva nos Estados Unidos, chamam-lhe a Guerra Boa. Por isso o Governo e a imprensa fazem comparações com a Segunda Guerra Mundial e dizem: “Na Segunda Guerra Mundial lutámos contra Hitler”. Sadam Hussein é Hitler, outro Hitler. Na Segunda Guerra Mundial disseram: “Devemos lutar pela democracia”. Agora também. Fazem estas comparações e estas analogias para apanhar os elementos morais da Segunda Guerra Mundial e transportá-los para todas as guerras incorrectas e injustas que temos feito desde o final daquela guerra.

Contracorriente: E que há com Cuba? A política dos Estados Unidos, desde o princípio, era a de estimular uma mudança de regime em Cuba, mas agora falam abertamente de o fazer.

HZ: Sempre falaram de mudanças de regime e é interessante, os norte-americanos não aprendem com a história que se ensina nas escolas norte-americanas, não aprendem com a história das mudanças de regime. Porque os Estados Unidos têm uma história de mudanças de regime e a questão é quando os Estados Unidos se envolvem em mudanças de regime, qual é o resultado? Podemos regressar a 1898, podemos voltar à guerra contra a Espanha. Isso era uma mudança de regime: Os Estados Unidos desfizeram-se da Espanha. Isso não trouxe a liberdade a Cuba, trouxe o poder norte-americano. É verdade que os Estados Unidos trataram de mudar regimes em todo o mundo, incluindo regimes democráticos, eleitos, no Chile e Guatemala. Muda o regime e qual é o resultado? Ditadura, morte, mas o povo norte-americano não conhece esta história. Os Estados Unidos, como diz, desde sempre quiseram mudar o regime em Cuba. Mas quando se envolveu numa mudança de regime o que esteve por detrás disso? A liberdade e a democracia? Não, o que sempre esteve por detrás disso é os Estados Unidos quererem que o poder seja de governos que estejam submetidos aos seus interesses. Durante a Guerra Fria diziam que queriam derrubar governos comunistas, mas não só governos comunistas, porque o Chile não tinha um governo comunista e a Guatemala tão-pouco. Não querem qualquer governo que não coopere com os Estados Unidos. Assim, o problema com Cuba não é ser marxista, comunista ou socialista. O problema é que Cuba insiste em ser independente, insiste em não se submeter aos Estados Unidos, esse é o problema de Cuba. E o Governo dos Estados Unidos não diz ao povo o que a Revolução Cubana fez pelos cubanos, a saúde, a educação, a cultura. Nada dizem sobre isso e criam a imagem de que Cuba tem um governo que deve ser derrubado. E agora estão mais agressivos, porque querem agradar aos cubanos da Florida.

Contracorriente: Mas antes, quando as pessoas da Florida, quero dizer os cubano-americanos não votavam nas eleições, o governo dos Estados Unidos já tinha uma política de mudança de regime e ninguém votava nas eleições a seguir a 59, a princípio.

HZ: Claro, não é a única razão, mas é a que se deu desde que eles começaram a votar na Florida.

Contracorriente: Sabe que a partir do território dos Estados Unidos, especialmente a partir da Florida, tem havido actividades terroristas contra Cuba desde início, mas agora, Bush diz que aqueles que abrigam um terrorista são eles próprios terroristas.

HZ: Pois, essa é uma forma muito conveniente para atacar qualquer governo que os Estados Unidos queiram atacar, dizer que abrigam terroristas. Então, se vai atacar qualquer governo que abrigue terroristas, tem que atacar os Estados Unidos. Os Estados Unidos albergou terroristas... e participou em actos terroristas. Isto é uma coisa que frequentemente se esquece quando se fala de terroristas. Participaram, como disse, em actos secretos de terrorismo contra Cuba, actos secretos de terrorismo contra a Nicarágua. Durante o governo de Reagan fez-se um acto secreto de terrorismo no Líbano, em que a CIA preparou o carro bomba para explodir numa mesquita em que morreram 80 pessoas. Mas sobre isto ainda quero acrescentar: Há actos de terrorismo cometidos por indivíduos ou grupos que se fanatizam por se sentirem ofendidos, mas os governos que praticam actos terroristas fazem-no em maior escala, porque têm mais recursos, muito mais poder. Os actos terroristas cometidos pelos governos custam muito mais vidas humanas que os actos individuais de terrorismo.

Contracorriente: Temos estado a falar de história e de política. Porque não falamos um sobre si, como escritor de obras de teatro? Marx in Soho , porquê?

HZ: Quando se derrubou a União Soviética em 90, 91, nos Estados Unidos todos disseram: “Ah, isto significa que o socialismo morreu, é o fim do socialismo, isto prova que o marxismo é um fracasso.” Eu não acreditei, primeiro porque não considerava que a União Soviética representasse o verdadeiro socialismo. Havia muita ditadura, muita burocracia, muita supressão da liberdade na União Soviética, por isso, para mim, o marxismo não está morto, agora que já não existe a União Soviética. A ideia de socialismo é para mim muito importante e é uma ideia que devia manter-se viva, por isso pensei como pôr isso em cena. Tinha escrito algumas obras de teatro antes, mas como podia pôr esta em cena? Bom, vou trazer o Marx para que fale, trá-lo-ei donde quer que esteja. Quem sabe onde está? Ele vivia no Soho de Londres, mas as pessoas que o trazem de volta, suponho que um comité, cometem um erro e em vez de o mandar para o Soho de Londres, envia-o para o Soho de Nova Iorque. É uma obra de teatro de um só personagem. Aparece o Karl Marx e diz: Estou aqui para explicar o que é realmente o marxismo e digo-lhes que a União Soviética não era verdadeiramente marxista e que as ideias marxistas sobre o capitalismo são válidas até porque agora estou em Nova Iorque e vejo pessoas vivendo na rua, vejo como as empresas controlam o governo, vejo como as pessoas estão absolutamente controladas pela televisão e a propaganda do governo e, apesar disso, como há diferenças de classe. Sim, as ideias marxistas estão vivas ainda. Quer dizer que o derrube da União Soviética não significa o derrube do socialismo, a ideia de socialismo continua a ser uma boa ideia; que a riqueza do mundo deveria ser distribuída equitativamente entre todos e que o socialismo não significa ditadura, mas liberdade, liberdade de expressão e Marx também quer dizer que o capitalismo é absolutamente desastroso para a maioria das pessoas e para a sociedade, por isso deve ser substituído por uma sociedade socialista que seja verdadeiramente democrática.

Contracorriente: Bom, foi uma grande honra e um grande prazer estar aqui com o senhor. Obrigado pelos seus pensamentos, pelas suas respostas, mas sobretudo por estar aqui.

HZ: Muito Obrigado, para mim foi muito estimulante estar neste momento em Cuba.

Os originais podem ser encontrados em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=7998
ou http://lahaine.org/b2/articulo.php?p=4974&more=1&c=1
Tradução de José Paulo Gascão.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Loucura eleitoral ao estilo americano

Loucura eleitoral ao estilo americano [originalmente publicado no dia 05/03/2008]

Historicamente, o governo — estivesse em mãos de republicanos ou de democratas, de conservadores de direita ou de liberais de esquerda — sempre fracassou quanto a assumir as próprias responsabilidades, até ser pressionado pela mobilização direta.

Howard Zinn*

Na Flórida há um homem que me escreve há anos (dez páginas manuscritas), apesar de que nunca nos encontramos. Ele me fala dos diversos trabalhos que já teve — guarda de segurança juramentado, técnico em consertos, etc. Já trabalhou de tudo que é jeito, à noite, de dia, conseguindo sustentar sua família com muita dificuldade. Suas cartas estão sempre cheias de raiva, lançam pragas contra nosso sistema capitalista, incapaz de garantir aos trabalhadores "a vida, a liberdade e a busca da felicidade".

Justamente hoje recebi uma de suas cartas, que por sorte não é manuscrita: agora ele usa o correio eletrônico. "Bom, hoje estou escrevendo porque neste país há uma situação calamitosa, que acho intolerável, e tenho que dizer algo sobre isso. Estou realmente enfurecido com esta crise das hipotecas. Estou irritado com isto de que a maioria dos norte-americanos tenham que viver suas vidas em condições de perpétuo endividamento e de que tantos estejam afundando sob tanto peso. Fico furioso, maldita seja! Hoje trabalhei como guarda juramentado, e minha tarefa foi vigiar uma casa que foi embargada e vai a leilão. Abriram a casa para os interessados e eu estava lá, para fazer a vigilância durante as visitas. No mesmo bairro estavam outros três guardas juramentados que faziam a mesma coisa em outras casas. Nos momentos calmos eu ficava ali sentado me perguntando quem seriam as pessoas despejadas e onde elas estariam agora".

No mesmo dia em que recebi a carta, o Boston Globe publicou um artigo intitulado "Milhares de casas embargadas em Massachussets em 2007". O subtítulo declara: "foram embargadas 7.563 casas, quase o triplo que em 2006". Poucas noites antes, a CBS tinha informado que 750.000 pessoas discapacitadas esperam há anos para receber seus pagamentos da assistência social, porque o sistema de previsão tem orçamento insuficiente e não há pessoal suficiente para atender todas as demandas, nem sequer as mais graves.

Histórias como estas podem até aparecer na mídia, mas desaparecem num piscar de olhos. O que não desaparece, o que mantém a imprensa ocupada dia após dia, impossível de ignorar, é o frenesi eleitoral.

Esta paixão toma conta do país a cada quatro anos, porque todos fomos educados na crença de que votar é fundamental para determinar nosso destino, que o ato mais importante que um cidadão pode realizar é ir às urnas, cada quatro anos, para eleger uma das duas mediocridades que já foram escolhidas para nós por outros. É um teste com respostas de seleção múltipla tão limitado, tão trapaceiro, que nenhum professor de respeito seria capaz de utilizá-lo como exame para seus alunos.

E é triste dizer isto, mas a disputa presidencial hipnotizou da mesma maneira a esquerda liberal e os radicais. Todos somos vulneráveis.

Será que é possível, nestes dias, encontrar os amigos e evitar o tema de conversa das eleições presidenciais?

As mesmas pessoas que deveriam estar mais atentas, as que nunca se cansam de criticar a pressão da mídia sobre a consciência nacional, percebem que estão paralisadas pela imprensa, grudadas na televisão, enquanto os candidatos dão tapinhas nas costas e sorriem enunciando uma infinidade de chavões com uma solenidade digna de poesia épica.

Nos chamados jornais de esquerda também, temos que admitir, se presta uma atenção desmedida ao exame minucioso dos principais candidatos. Ocasionalmente se dá uma olhadinha nos candidatos menores, apesar de que todo o mundo sabe que o nosso maravilhoso sistema político democrático não vai deixar que nenhum deles ultrapasse o marco da porta.

Não; não estou adotando uma postura de ultra-esquerda, segundo a qual as eleições seriam totalmente irrelevantes, ou seja que deveríamos nos recusar a votar para preservar a pureza da nossa moralidade. É claro que há candidatos que são um pouco melhores do que outros, e em certos momentos de crise nacional (os anos 30, por exemplo, ou hoje), mesmo uma diferença pequena entre os dois partidos pode ser uma questão de vida ou morte.

Do que estou falando é de um senso da proporção que desaparece com a loucura eleitoral. Você vai ficar do lado de um candidato e contra o outro? Sim, durante dois minutos; o tempo que basta para depositar a cédula na urna.

Mas antes e depois desses dois minutos, nosso tempo, nossa energia, precisamos dedicá-los a instruir, mobilizar, organizar nossos concidadãos em seus locais de trabalho, em nosso bairro, nas escolas. Nosso objetivo deveria ser construir, laboriosamente, pacientemente, mas energicamente, um movimento que, uma vez alcançada uma certa massa crítica, pudesse ter influência sobre qualquer um que estiver na Casa Branca ou no Congresso, para impor uma virada na política nacional nas questões da guerra e da justiça social.

É preciso lembrar que mesmo quando existe um candidato claramente melhor (sim, melhor Roosevelt que Hoover; melhor qualquer um do que Bush), essa diferença vai ficar em nada, a menos que o poder do povo esteja tão firme que para os ocupantes da Casa Branca se torne muito difícil ignorá-lo.

As políticas sem precedentes do New Deal –assistência social, seguro desemprego, criação de vagas de emprego, salário mínimo, subvenções para habitação— não foram simplesmente o resultado da postura progressista de Roosevelt. A administração Roosevelt, quando chegou ao poder, encontrou uma nação efervescente de agitação. O último ano da administração Hoover tinha visto a rebelião do Bônus Army: milhares de veteranos da primeira guerra mundial marcharam sobre Washington para exigir ajudas ao Congresso porque suas famílias estavam passando fome. Houve manifestações de desempregados em Detroit, Chicago, Boston, Nova York e Seattle.

Em 1934, no início do período presidencial de Roosevelt, ocorreram greves em todo o país, incluída uma greve geral em Mineapolis, uma greve geral em San Francisco, centenas de milhares de pessoas cruzaram os braços nas fábricas de têxteis do Sul. Por todo o país surgiram conselhos de operários desempregados. As pessoas, desesperadas, mobilizaram-se de maneira autônoma, obrigando a polícia recolocar os móveis dentro das casas dos locatários despejados e criando organizações de auto-ajuda com centenas de milhares de membros.

Sem uma crise nacional –pauperização econômica e rebelião—, dificilmente a administração Roosevelt teria empreendido aquelas valentes reformas.

Hoje podemos estar certos de que o Partido Democrata, a menos que se enfrente a uma sublevação popular, não vai sair do centro. Os dois principais candidatos à presidência deixaram claro que, se forem eleitos, nem vão acabar com a guerra do Iraque imediatamente, nem vão instituir um sistema de assistência sanitária gratuita para todos.

Não oferecem uma mudança radical com respeito ao statu quo.

Suas propostas não são nada do que o desespero popular exige com urgência, ou seja: a garantia do governo de um trabalho para todos aqueles que precisam, uma renda mínima para todas as famílias, uma ajuda para aqueles que correm risco de ser despejados e ter suas casas leiloadas.

Não sugerem recortes significativos dos gastos militares ou reformas radicais no sistema fiscal que poderiam liberar bilhões, ou até trilhões, para destiná-los a programas sociais para transformar nosso modo de vida.

Nada disto deveria nos causar assombro. O Partido Democrata só rompe com seu conservadorismo histórico, com seu desejo de satisfazer os ricos, com sua predileção pela guerra, quando se encontra com uma rebelião dos de baixo, como aconteceu nos anos 1930 e nos anos 1960. Não deveríamos esperar que uma vitória nas urnas comece a curar o país de suas duas doenças fundamentais: a cobiça do capitalismo e o militarismo.

Por isso, deveríamos nos libertar da loucura eleitoral em que está submersa toda a sociedade, incluída a esquerda.

Sim. Dois minutos. Antes e depois temos que nos mobilizar pessoalmente contra todos os obstáculos que atravessam o caminho da vida, da liberdade e da busca da felicidade.

Por exemplo, os embargos que estão privando milhões de pessoas de suas casas deveriam nos fazer lembrar de uma situação muito parecida ocorrida após a guerra revolucionária [de Independência], quando os pequenos granjeiros, muitos deles veteranos da guerra (como são também hoje muitos dos sem-teto) não podiam se permitir pagar os impostos e foram ameaçados de perder suas terras e suas casas. Eles se reuniram em milhares diante das cortes de justiça e impediram a execução dos leilões.

Hoje, o despejo das pessoas que não conseguem pagar seus aluguéis deveria trazer à nossa memória o que fizeram as pessoas nos anos 1930, quando se mobilizaram e, desafiando as autoridades, fizeram com que os pertences das famílias despejadas fossem colocados novamente em suas casas.

Historicamente, o governo —estivesse em mãos de republicanos ou de democratas, de conservadores de direita ou de liberais de esquerda— sempre fracassou quanto a assumir as próprias responsabilidades, até ser pressionado pela mobilização direta: manifestações de todo tipo pelos direitos dos negros, greves e boicotes pelos direitos dos trabalhadores, rebeliões e deserções dos soldados para terminar com a guerra. Votar é um gesto fácil e de utilidade marginal, mas é um pobre substituto da democracia, que exige a ação direta de cidadãos comprometidos.

* Howard Zinn é co-autor, junto com Anthony Arnove, de Voices of a People's History of the United States. Seu livro mais recente é A Power Governments Cannot Suppress (Um poder que os governos não podem suprimir).


Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

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quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Do Império à Democracia, por Howard Zinn

Do Império à Democracia, por Howard Zinn

Fonte: The Guardian
Tradução: Agência Imediata

Não devemos desperdiçar 700 bilhões de dólares num resgate, mas usar o “governo forte” naquilo que ele pode fazer melhor – moldar uma sociedade que seja justa e pacífica

A crise financeira atual é uma das estações principais no caminho para o colapso do império americano. O primeiro sinal importante foi o 11 de setembro, quando a nação mais fortemente armada do mundo se mostrou vulnerável a um punhado de seqüestradores.
E agora, outro sinal: ambos os principais partidos na pressa de obter um acordo para gastar 700 bilhões de dólares dos contribuintes que escorrerão pelo ralo de imensas instituições financeiras que são conhecidas por duas características: incompetência e ganância.

Há uma solução muito melhor para a crise financeira atual. Mas ela requer que se descarte aquilo que tem sido considerado “sabedoria” convencional por muito tempo: que a intervenção governamental na economia (“governo forte”) deva ser evitado como uma praga, porque o “livre mercado” guiaria a economia na direção do crescimento e da justiça.

Devemos encarar a verdade histórica de frente: nunca tivemos um “livre mercado”, sempre tivemos intervenção do estado na economia e, de fato, essa intervenção sempre foi bem recebida pelos capitães das finanças e da indústria. Eles nunca tiveram problemas com o “governo forte”, quando esse serviu seus interesses.

Isso começou há muito tempo, quando os pais fundadores se reuniram na Filadélfia em 1787, para esboçar a constituição. O primeiro resgate significativo foi a decisão do novo governo de indenizar pelo valor integral as obrigações do governo praticamente destituídas de qualquer valor em posse dos especuladores. E esse papel de “governo forte”, dando suporte aos interesses das classes “de negócios” continuou através da história da nação.

A lógica de se tomar 700 bilhões de dólares dos contribuintes para subsidiar imensas instituições financeiras é que, de alguma forma, aquela riqueza vai escoar aos poucos, sendo repassada para as pessoas que dela necessitam. Isso nunca funcionou.

A alternativa é simples e poderosa. Pegar essa incrível soma de dinheiro e entregá-la diretamente às pessoas que dela precisam. Deixar que o governo declare uma moratória nas execuções das hipotecas e fornecer ajuda aos proprietários das casas para ajudá-los a pagar suas hipotecas. Criar um programa de empregos federal para garantir trabalho às pessoas que querem e precisam de emprego, e para as quais o “livre mercado” não valeu.

Temos um precedente histórico de sucesso: o New Deal de Roosevelt, que gerou empregos a milhões de pessoas, reconstruindo a infra-estrutura da nação e, contestando os ataque de “socialismo” estabeleceu a previdência social. Isso poderia ser levado mais longe, com “seguro de saúde” – previdência de saúde gratuita – para todos.

Isso tudo vai custar mais de 700 bilhões. Mas o dinheiro está aí. No orçamento militar de 600 bilhões de dólares, uma vez que decidirmos que não seremos uma nação promotora de guerra. E nas contas bancárias infladas dos super-ricos, tributando vigorosamente tanto suas rendas como seus patrimônios.

Quando o grito aumenta, tanto por parte dos republicanos quanto dos democratas, que isso não pode ser feito, por causa do “governo forte” que implica, os cidadãos deveriam gargalhar, apenas. E daí agitar e organizar-se em nome daquilo que a Declaração de Independência prometeu: de que é responsabilidade do governo garantir direitos iguais a todos “à vida, liberdade e busca da felicidade”.
Só uma abordagem ousada como essa poderá salvar a nação – não como um império, mas como uma democracia.

© Guardian News and Media Limited 2008
Howard Zinn é historiador, dramaturgo e ativista social.


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Obama: a diferença?


Barack Obama. Foto de Joe Crimmings Photography, FlickRParece que Barack Obama e John McCain estão a discutir em que guerra lutar. McCain diz: mantenhamos as tropas no Iraque até "ganharmos". Obama diz: retiremos algumas tropas (não todas) do Iraque e enviemo-las para combater no Afeganistão, para "ganharmos" aí.

Por Howard Zinn


Como sou alguém que lutou numa guerra (a Segunda Guerra Mundial) e desde então me oponho a ela, devo perguntar: os nossos líderes políticos enlouqueceram? Não aprenderam nada com a história recente? Não aprenderam que ninguém "ganha" numa guerra, mas que centenas de milhar de seres humanos morrem, quase todos civis, muitos deles crianças?

Por acaso "ganhámos" fazendo a guerra na Coreia? O resultado foi um ponto morto, que deixou as coisas como estavam antes: uma ditadura na Coreia do Sul, uma ditadura na Coreia do Norte, mas morreram mais de 2 milhões de pessoas, quase todas civis, lançámos napalm sobre crianças e 50 mil soldados dos EUA perderam a vida.

"Ganhámos" por acaso no Vietname? A resposta é óbvia. Fomos forçados a retirar, mas somente depois de morrerem 2 milhões de vietnamitas, de novo civis na sua maioria, deixamos outra vez crianças sem braços ou sem pernas ou queimadas, além de morrerem 58 mil soldados norte-americanos.

"Ganhámos" na primeira Guerra do Golfo? Na realidade não. É verdade que expulsámos Saddam Hussein do Kuwait, apenas com umas centenas de baixas norte-americanas, mas matámos dezenas de milhar de iraquianos nesse processo. E as consequências foram fatais para nós: o facto de Saddam continuar no poder levou-nos a pôr em prática sanções económicas que conduziram à morte de centenas de milhar de iraquianos (de acordo com funcionários das Nações Unidas) e levantaram o cenário de uma nova guerra.

No Afeganistão, declarámos "vitória" sobre os talibans, mas os talibans estão de regresso, os ataques aumentam e as nossas baixas no Afeganistão já excedem as do Iraque. Porque pensa Obama que se enviarmos mais tropas para o Afeganistão obteremos a "vitória"? E mesmo se assim fosse, no sentido militar imediato, quanto duraria isso e a que custo em vidas humanas de ambos os lados?

O recrudescimento dos combates no Afeganistão é um bom momento para reflectir sobre como começou o nosso envolvimento aí. Permitam-me dirigir algumas observações aos que dizem, como muitos outros, que atacar o Iraque foi errado, mas que atacar o Afeganistão foi correcto.

Regressemos ao 11 de Setembro. Uns sequestradores dirigem os aviões que têm em seu poder contra o Centro de Comercio Mundial e o Pentágono, e matam 3 mil pessoas. Um acto terrorista, indesculpável por qualquer código moral. A nação está enfurecida. O presidente Bush dá ordem de invadir e bombardear o Afeganistão e uma onda de aprovação percorre o público norte-americano tolhido de medo e raiva. Bush anuncia então a sua "guerra contra o terror".

Todos (excepto os terroristas) estamos contra o terrorismo. Deste modo, uma guerra contra o terrorismo soa bem. No calor dos acontecimentos, os norte-americanos não consideraram que não tínhamos sequer ideia de como fazer a guerra contra o terrorismo, e tão pouco Bush a tinha, pese às suas bravatas.

É verdade, aparentemente a Al Qaeda - um grupo de fanáticos, relativamente pequeno mas implacável - era o responsável. E havia evidências de que os seus líderes, Osama Bin Laden e outros, tinham a sua base no Afeganistão. Mas não sabíamos exactamente onde. Desta forma, invadimos e bombardeamos o país inteiro. Isso fez que muita gente se sentisse "justiceira": "Tínhamos de fazer alguma coisa", escutávamos as pessoas dizer.

Sim, tínhamos de fazer alguma coisa. Mas não sem pensar, não de forma irresponsável. Por acaso aprovaríamos que um chefe de polícia, sabendo que havia um criminoso acoitado em algum sítio dum bairro, ordenasse o bombardeamento de todo o bairro? Isto rapidamente deu origem a que o total de mortos civis no Afeganistão ultrapassasse os 3 milhares - excedendo o número de vítimas do 11 de Setembro. Numerosos afegãos tiveram de abandonar as suas casas e converteram-se em refugiados ambulantes.

Dois meses depois da invasão do Afeganistão, um repórter do Boston Globe descreveu uma criança de 10 anos que jazia num hospital: "Perdeu os olhos e as mãos devido a uma bomba que explodiu em sua casa logo a seguir à refeição dominical". O médico que o tratava disse: "Os Estados Unidos devem pensar que ele é o Osama. Mas ele não é o Osama, porque lhe fazem isto?"

Deveríamos perguntar aos candidatos presidenciais: a nossa guerra no Afeganistão, que ambos aprovam, põe fim ao terrorismo ou provoca-o? A guerra não é em si mesma terrorismo?

Poderia assumir-se, do que acima se disse, que não vejo diferença entre McCain e Obama, que os vejo como equivalentes. Não é assim. Há uma diferença, que não é suficientemente significativa para me dar confiança em Obama como presidente, mas é suficiente para votar por Obama na esperança de que derrote McCain.

Seja quem for o presidente, o factor crucial de uma mudança é que exista agitação suficiente num país a favor da mudança. Suponho que Obama pode ser mais sensível que McCain a essa agitação, dado que ela virá dos seus simpatizantes, dos entusiastas que mostraram a sua desilusão saindo à rua. Franklin D. Roosevelt não foi um radical, mas era mais sensível à crise económica do país e mais susceptível à pressão oriunda da esquerda do que Herbert Hoover.

Mesmo para os mais "puros" dos radicais, deve ser possível reconhecer as diferenças que podem significar a vida ou a morte de milhares. Em França, durante a guerra da Argélia, a eleição de De Gaulle - que não era de todo um anti-imperialista mas estava consciente do inevitável declinar dos impérios - foi significativa para pôr fim àquela prolongada e brutal ocupação.

Não tenho dúvida alguma de que o mais sábio, o mais confiável, o mais íntegro de todos os candidatos recentes é Ralph Nader. Mas penso que é um desperdício da sua força política, um acto insignificante, desgastá-lo na arena eleitoral, em que o resultado só pode ser visto como prova de debilidade. O seu poder, a sua inteligência, apoiam-se na mobilização das pessoas fora das urnas eleitorais.

Por isso, sim, votarei por Obama, porque o sistema político corrupto não me oferece outra opção, mas só por um momento: quando accionar o dispositivo apropriado na cabina de voto.

Antes e depois desse momento, quero usar toda a minha energia para fazer com que reconheça que deve desafiar os pensadores tradicionais e os interesses corporativos que o rodeiam, e prestar homenagem aos milhões de norte-americanos que querem uma mudança de verdade.

Uma clarificação final. As lições que retiro da História quanto à futilidade de "ganhar" não devem ser entendidas no sentido de que o que está mal na nossa política no Iraque é que não possamos "ganhar". Não é que não possamos ganhar. É que não deveríamos ganhar, porque não é o nosso país.

Howard Zinn é historiador, cientista político, crítico social, dramaturgo, socialista e activista norte-americano. O seu livro mais conhecido é "A História do Povo dos Estados Unidos". Autor de mais de 20 livros, é professor emérito de ciência política da Universidade de Bston.

Tradução (para castelhano) de Ramón Vera Herrera, do La Jornada . Tradução para português de José Pedro Fernandes

Retirado de The Progressive, Outubro de 2008. Reproduzido pelo La Jornada com consentimento expresso do autor.


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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Sacco e Vanzetti por Howard Zinn

Protesto pela libertação de Sacco e Vanzetti (1927)Cinquenta anos depois das execuções dos imigrantes italianos Sacco e Vanzetti, o Governador Dukakis, de Massachusetts, criou uma comissão para julgar a imparcialidade do julgamento, e a conclusão foi que os dois homens não tinham tido um julgamento justo. Isto causou uma pequena tempestade em Boston.
Uma carta, assinada por John M. Cabot, antigo embaixador dos EUA, declarava a sua "grande indignação" e assinalou que a confirmação da pena de morte feita pelo governador Fuller aconteceu depois de uma revisão especial do caso por "três dos cidadãos mais distintos e respeitados de Massachusetts - o presidente de Harvard, Lowell, o presidente do MIT, Stratton, e o juiz reformado Grant."
Artigo de Howard Zinn publicado em znet

Estes três " distintos e respeitados cidadãos" são vistos de uma forma diferente por Heywood Broun, que escreveu na sua coluna no jornal "New York World" imediatamente após a publicação do relatório da comissão do Governador. Ele escreveu:

"Não é qualquer prisioneiro que tem um presidente da Universidade de Harvard a carregar no interruptor por ele... Se isto é um linchamento, pelo menos o vencedor ambulante de peixe e o seu amigo operário puderam ter como consolo das suas almas terem morrido às mãos de homens em fato completo ou toga académica."

Heywood Broun, um dos mais premiados jornalistas do século XX, não durou muito como colunista do "New York World".

No 50º ano depois da execução, o "New York Times" relatou que: "Os planos do Presidente da Câmara Beame para declarar a próxima terça-feira "Dia de Sacco e Vanzetti" foram cancelados para evitar a controvérsia, disse ontem um porta-voz da Câmara Municipal."

Deve haver uma boa razão para que um caso com 50 anos, agora com mais de 75, cause tanta emoção. A minha sugestão é que as conversas sobre Sacco e Vanzetti lembram-nos inevitavelmente questões que nos incomodam hoje: o nosso sistema de justiça, a relação entre a obsessão pela guerra e as liberdades civis e, mais perturbante ainda, as ideias anarquistas: a eliminação de fronteiras nacionais e, portanto, da guerra, o fim da pobreza e a criação de uma democracia plena.

O caso de Sacco e Vanzetti revelou, nos seus termos mais crus, que as palavras nobres inscritas nos nossos tribunais, "Justiça Igual perante a Lei", sempre foram uma mentira. Aqueles dois homens, um vendedor de peixe e um sapateiro, não podiam obter Justiça no sistema americano, porque a justiça não é distribuída igualmente entre os pobres e os ricos, os nativos e os estrangeiros, os ortodoxos e os radicais, os brancos e os de cor. E, apesar de a injustiça poder hoje demonstrar-se de formas mais subtis e intrincadas do que nas circunstâncias brutais do caso Sacco e Vanzetti, ela é essencialmente a mesma.

Neste caso, a parcialidade foi flagrante. Estavam a ser julgados por roubo e assassínio, mas nas mentes e no comportamento do advogado de acusação, do juiz e do júri, o mais importante sobre eles era serem quem eram, como diz Upton Sinclair no seu romance notável "Boston", "wops" (pejorativo para italianos), estrangeiros, trabalhadores pobres, radicais.

Eis uma amostra do interrogatório policial:

Polícia: És um cidadão?

Sacco: Não.

Polícia: És um comunista?

Sacco: Não.

Polícia: Anarquista?

Sacco: Não.

Polícia: Acreditas neste nosso governo?

Sacco: Sim; algumas coisas gostava que fossem diferentes.

O que tinham estas questões a ver com o roubo de uma fábrica de sapatos em South Braintree, Massachusetts, e com os tiros que mataram um caixa e um guarda?

Sacco mentia, claro. "Não, não sou um comunista. Não, não sou um anarquista." Porque mentiria ele à polícia? Porque mentiria um judeu à Gestapo? Porque mentiria aos seus interrogadores um negro na África do Sul? Porque mentiria à polícia secreta um dissidente na Rússia soviética? Porque todos sabem que não há justiça para eles.

Alguma vez existiu justiça no sistema americano para os pobres, para as pessoas de cor, para os radicais? Quando os oito anarquistas de Chicago foram condenados à morte depois do motim de Haymarket (um motim criado pela polícia) em 1886, não foi porque existisse qualquer prova que os ligasse à bomba atirada para o meio da polícia; não havia nem cheiro de provas. Foram condenados porque eram dirigentes do movimento anarquista de Chicago.

Quando Eugene Debs e milhares de outros foram presos durante a I Guerra Mundial, ao abrigo da Lei da Espionagem, foram porque eram culpados de espionagem? Nem pensar. Eram socialistas que falaram contra a guerra. Ao confirmar a sentença de dez anos para Debs, o juiz do Supremo Tribunal Oliver Wendell Holmes esclareceu porque é que Debs tinha de ser preso. Ele citou do discurso de Debs: "A classe dominante sempre declarou guerras, a classe oprimida sempre lutou nas batalhas daqueles."

Holmes, muito admirado como um dos nossos grandes juristas liberais, deixou claros os limites do liberalismo, as suas fronteiras estabelecidas por um nacionalismo vingativo. Depois de esgotados todos os apelos de Sacco e Vanzetti, o caso chegou a Holmes, no Supremo Tribunal. Ele recusou rever o caso, mantendo portanto o veredicto.

No nosso tempo, Ethel e Julius Rosenberg foram condenados à cadeira eléctrica. Foi porque eles eram culpados para além de uma dúvida razoável de passar segredos nucleares à União Soviética? Ou foi porque eram comunistas, como a acusação deixou claro, com a aprovação do juiz? Foi também porque o país estava mergulhado numa histeria anti-comunista, os comunistas tinham acabado de tomar o poder na China, havia uma guerra na Coreia, e o peso de tudo isso podia ser suportado por dois comunistas americanos?

Porque foi George Jackson, na Califórnia, condenado a dez anos de prisão por um roubo de 70 dólares, e depois morto a tiro por dois guardas? Foi porque era pobre, negro e radical?

Hoje, com a atmosfera de "guerra ao terror" em que vivemos, será possível um muçulmano ter acesso a uma justiça imparcial, à igualdade perante a Lei? Porque foi o meu vizinho, um brasileiro de pele escura que podia ser tomado por um muçulmano do Médio Oriente, retirado do seu carro pela polícia, apesar de não ter violado qualquer regulamento, questionado e humilhado?

Porque são os dois milhões de pessoas nas prisões e penitenciárias americanas, e os seis milhões em liberdade condicional ou sob vigilância, desproporcionalmente pessoas de cor, desproporcionalmente pobres? Um estudo demonstrou que 70% das pessoas presas no estado de Nova Iorque vêm de sete bairros da cidade de Nova Iorque - bairros de pobreza e desespero.

A injustiça de classe atravessa todas as décadas, todos os séculos da nossa história. No tempo do julgamento de Sacco e Vanzetti, um homem rico da cidade de Milton, a sul de Boston, atirou sobre um homem que juntava lenha na sua propriedade, matando-o. Passou oito dias na cadeia, depois foi libertado sob fiança, e nunca foi acusado. O advogado do Ministério Público chamou-lhe "um homicídio justificável". Uma lei para os ricos, uma lei para os pobres - uma característica persistente do nosso sistema de justiça.

Porém, serem pobres não era o maior crime de Sacco e Vanzetti. Eram italianos, imigrantes, anarquistas. Tinham passado menos de dois anos depois do final da I Guerra Mundial. Eles tinham protestado contra a guerra. Tinham recusado o alistamento. Viram a histeria contra imigrantes e radicais crescer, observaram as incursões dos agentes do Procurador Chefe Palmer, do Departamento de Justiça, que entravam à força nas casas a meio da noite sem mandatos, mantinham pessoas incomunicáveis e espancavam-nas com bastões e tubos de metal.

Em Boston, foram presos 500, acorrentados uns aos outros e levados em marcha pelas ruas. Luigi Galleani, editor do jornal anarquista "Cronaca Sovversiva", que Sacco e Vanzetti assinavam, foi apanhado em Boston e rapidamente deportado.

Algo ainda mais assustador tinha acontecido. Um anarquista, companheiro de Sacco e Vanzetti, tipógrafo de seu nome Andrea Salsedo, que vivia em Nova Iorque, foi raptado por membros do FBI (uso a palavra "raptado" para descrever a prisão ilegal de uma pessoa), e mantido nos escritórios do FBI no 14º andar do edifício de Park Row. Não lhe foi permitido telefonar à família, aos amigos ou a um advogado e, segundo outro prisioneiro, foi interrogado e espancado. Na oitava semana da sua prisão, a 3 de Maio de 1920, o corpo de Salsedo, em carne viva, foi encontrado no passeio perto do edifício de Park Row e o FBI anunciou que ele se tinha suicidado saltando do 14º andar, pela janela do quarto em que o mantinham. Isto foi dois dias antes de Sacco e Vanzetti serem presos.

Hoje sabemos, na sequência dos relatórios do Congresso de 1975, do programa COINTELPRO do FBI em que os agentes do FBI entravam nas casas e escritórios de pessoas, fizeram escutas ilegais, estiveram envolvidos em actos de violência e assassínio e colaboraram com a polícia de Chicago na morte de dos líderes dos Panteras Negras em 1969. O FBI e a CIA quebraram a lei muitas vezes. Não há castigo para eles.

Tem havido poucas razões par ter fé que as liberdades civis das pessoas deste país serão protegidas na atmosfera de histeria que se seguiu ao 11 de Setembro e que persiste até hoje. Aqui, têm havido prisões colectivas de imigrantes, detenções sem prazo, deportações, e espionagem doméstica não autorizada. No estrangeiro, houve assassínios extra-judiciais, tortura, bombardeamentos, guerra e ocupações militares.

Igualmente, o julgamento de Sacco e Vanzetti começou imediatamente após o Dia do Memorial, um ano e meio depois da orgia de morte e patriotismo que foi a I Guerra Mundial, quando os jornais ainda vibravam com o ruído dos tambores e a retórica fácil.

Doze dias depois do início do julgamento, a imprensa relatou que os corpos de três soldados tinham sido transferidos dos campos de batalha franceses para a cidade de Brockton e que toda a cidade tinha comparecido para uma cerimónia patriótica. Tudo isto estava nos jornais, que os membros do júri podiam ler.

Sacco foi contra-interrogado pelo advogado de acusação Katzmann:

Pergunta: Amava este país na última semana de Maio de 1917?

Sacco: Isso é bastante difícil, para mim, responder numa só palavra, senhor Katzmann.

Pergunta: Só há duas palavras que pode usar, senhor Sacco, sim ou não. Qual delas é?

Sacco: Sim.

Pergunta: E foi para mostrar o seu amor pelos Estados Unidos da América, quando estes estavam prestes a chamá-lo para ser um soldado, que fugiu para o México?

No início do julgamento, o juiz Thayer (que, num encontro de golfe, se referiu num discurso aos arguidos como "aqueles bastardos anarquistas") disse ao júri: "Meus senhores, apelo a que cumpram esta missão que foram chamados a desempenhar com o mesmo espírito de patriotismo, coragem e devoção ao dever que mostraram os nossos rapazes, soldados, no ultramar."

As emoções evocadas por uma bomba que explodiu na casa do Procurador Chefe Palmer durante um tempo de guerra - tal como as emoções libertadas pela violência do 11 de Setembro - criaram uma atmosfera de ansiedade na qual as liberdades civis foram prejudicadas.

Sacco e Vanzetti compreenderam que, qualquer fosse o argumento que os seus advogados apresentassem, não venceriam contra a realidade da injustiça de classe. Sacco disse ao tribunal, durante a sentença: "Eu sei que a sentença será entre duas classes, a classe oprimida e a classe rica... É por isso que me sento hoje neste banco, por ter sido da classe oprimida."

Este ponto de vista parece dogmático, simplista. Nem todas as decisões dos tribunais são explicadas por ele. Mas, na falta de uma teoria que se aplique a todos os casos, a visão simples e forte de Sacco é certamente um melhor guia para perceber o sistema legal do que a que define uma disputa entre iguais baseada na busca objectiva da verdade.

Vanzetti sabia que os motivos legais não os iam salvar. A menos que um milhão de americanos se organizassem, ele e o seu amigo Sacco morreriam. Não com palavras, mas com luta. Não com apelos, mas com exigências. Não com petições, mas com ocupações de fábricas. Não lubrificando a maquinaria de um sistema supostamente justo para o fazer trabalhar melhor, mas com uma greve geral que parasse a máquina.

Isso nunca aconteceu. Milhares manifestaram-se, marcharam, protestaram, não apenas em Nova Iorque, Boston, Chicago, São Francisco, mas também em Londres, Paris, Buenos Aires, África do Sul. Não foi suficiente. Na noite da execução, milhares manifestaram-se em Charlestown, mas foram mantidos longe da prisão por um ajuntamento enorme de polícias. Alguns, dos que protestavam, foram presos. Metralhadoras nos telhados e enormes projectores varriam a cena.

Uma multidão enorme juntou-se na Praça da União a 23 de Agosto de 1927. Poucos minutos depois da meia-noite, as luzes da prisão ficaram mais fracas enquanto os dois homens eram executados. O "New York World" descreveu a cena: "A multidão respondeu com um soluço gigante. Mulheres desmaiaram em quinze ou vinte sítios. Outros, demasiado perturbados, caíram no lancil e enterraram a cabeça nas mãos. Homens apoiaram-se nos ombros uns dos outros e choraram."

O seu maior crime era o anarquismo, uma ideia que ainda hoje nos assusta como um relâmpago por causa da sua verdade essencial: somos todos um só, as fronteiras nacionais e os ódios nacionais devem desaparecer, a guerra é intolerável, os frutos da terra devem ser partilhados e só uma luta organizada contra a autoridade pode produzir um mundo assim.

O que chega até nós do caso de Sacco e Vanzetti não é apenas tragédia, mas também inspiração. O inglês deles não era perfeito, mas quando falavam era uma espécie de poesia. Vanzetti disse do seu amigo Sacco:

"Sacco é um coração, uma fé, um carácter, um homem; um homem amante da natureza e da humanidade. Um homem que deu tudo, que tudo sacrificou á causa da liberdade e ao seu amor da humanidade: dinheiro, descanso, ambição mundana, a sua mulher, os seus filhos, ele próprio e a sua vida... sim, eu posso ser mais astuto, como disseram alguns, sou um melhor falador do que ele, mas muitas, muitas vezes, ao ouvir a sua bela voz vibrar com uma fé sublime, ao considerar o seu supremo sacrifício, ao lembrar o seu heroísmo, sinto-me pequeno, pequeno na presença da sua grandeza, e encontro-me obrigado a reprimir as lágrimas dos meus olhos, apagar o meu coração que me salta da garganta, para não chorar diante dele - este homem foi chamado chefe, assassino e condenado".

Pior que tudo, eram anarquistas, significando que tinham uma ideia louca de uma democracia plena em que nem o ser estrangeiro, nem a pobreza, existissem, e que pensavam que, sem estas provocações, a guerra entre nações acabaria para sempre. Mas, para isto acontecer, os ricos teriam de ser combatidos e os seus bens confiscados. Esta ideia anarquista é um crime muito pior do que roubar um salário, e portanto até hoje a história de Sacco e Vanzetti não pode ser recordada sem grande ansiedade.

Sacco escreveu ao seu filho Dante: "Portanto, filho, em vez de chorar, sê forte, para conseguires consolar a tua mãe... leva-a para um passeio longo num campo tranquilo, apanhando flores aqui e ali, descansando sob a sombra das árvores... Mas lembra-te sempre, Dante, nesta peça de felicidade, não a uses toda apenas para ti... ajuda os perseguidos e as vítimas porque eles são os teus melhores amigos... Nesta luta da vida vais encontrar mais amor e serás amado."

Sim, isto era anarquismo, o amor deles pela humanidade, que os condenou. Quando Vanzetti foi preso, tinha um panfleto no seu bolso que anunciava um encontro dali a cinco dias. É um panfleto que podia ser distribuído hoje, em qualquer sítio do mundo, tão certo nos nossos dias como o era no dia da sua prisão. Declarava:

"Vocês combateram todas as guerras. Vocês trabalharam para todos os capitalistas. Vocês viajaram por todos os países. Colheram os frutos do vosso trabalho, o valor das vossas vitórias? O passado consola-vos? O presente sorri-vos? O futuro promete-vos alguma coisa? Encontraram um pedaço de terra em que possam viver como seres humanos e morrer como seres humanos? Sobre estas perguntas, sobre esta discussão, sobre este tema, a luta pela existência, falará Bartolomeo Vanzetti."

Essa reunião não se realizou. Mas o seu espírito ainda existe hoje, com pessoas que acreditam e amam e lutam por todo o mundo.

Data do assassinato 23/08/1927

Originalmente publicado no Esquerda.net.

terça-feira, 10 de junho de 2008

O Tio Sam que você nunca viu - Artigo sobre o livro "A people`s History of the United States: 1942 - Present.



O Tio Sam que você nunca viu

Em “A Outra História dos Estados Unidos”, o historiador Howard Zinn revela uma grande potência manchada por seus pecados, preconceitos e fraquezas Waldir José Rampinelli Florianópolis

Nos arredores de Boston, em uma lápide no parque nacional, lê-se a inscrição: “Aqui jaz uma mulher índia, uma wampanoag, cuja família e tribo entregaram suas vidas e suas terras para que esta grande nação pudesse nascer e prosperar”. Muitos cidadãos americanos, gente decente e bem intencionada – diz Chomsky –, desfilam continuamente junto a esta tumba, lendo o epitáfio sem exibir a mínima reação, quando não um sentimento de satisfação pela homenagem prestada a esta pobre gente. Provavelmente não fariam o mesmo diante de um Auschwitz ou um Dachau, tanto que o Dia Anual de Lembrança do Holocausto é um evento nacional nos Estados Unidos. Sete grandes museus se espalham pelo país recordando o massacre nazista e nenhum sobre a escravidão capitalista. O genocídio dos nativos – cuja população girava em torno de 12 a 15 milhões de pessoas por volta de 1492 – se estendeu mais tarde aos negros, sem esquecer a opressão e a exploração da classe dominante aos brancos pobres, às mulheres e às crianças. No plano externo, com as guerras os Estados Unidos não apenas conquistaram 55% do território mexicano, como também se apoderaram de domínios e ilhas espanholas, obrigaram a França a vender a Luisiânia e impuseram, baseados em suas mais diversas doutrinas (Doutrina Monroe, Destino Manifesto), uma hegemonia sobre a América Latina. Deste modo, os Estados Unidos foram se expandindo e contando a sua história como uma grande saga e uma grande aventura de um grande povo .

O historiador Howard Zinn mostra em “A Outra História dos Estados Unidos”, ainda sem tradução para o Brasil, a que não é ensinada nas escolas e universidades, e tampouco escrita nos livros e revistas. “Se a história tem que ser criativa – para assim antecipar um possível futuro sem negar o passado – deveria, creio eu, se centrar nas novas possibilidades baseando-se no descobrimento dos fatos esquecidos do passado, nos quais, ainda que seja só em breves pinceladas, as pessoas mostraram uma capacidade para a resistência, para a unidade e, ocasionalmente, para a vitória.” Ao se referir à Declaração de Independência redigida por Thomas Jefferson e proclamada em 4 de julho de 1776, afirma que, embora ela enunciasse “que todos os homens são criados iguais, que seu Criador lhes dá certos direitos inalienáveis, entre outros o da Vida, o da Liberdade e o da Felicidade”, ocorreu, no entanto, que uma grande maioria dos americanos foi claramente excluída dessas conquistas, como os índios, os negros, os brancos pobres e as mulheres. A estes foram oferecidas as aventuras e as recompensas do serviço militar, para que lutassem por uma causa que talvez nunca sentiram como própria. Zinn fala da vitória final em 1781, em Yorktown, na Virginia, na qual os ingleses foram derrotados com a ajuda de um potente exército e frota francesa bem como dos marginalizados da sociedade.

Persiste até hoje nos Estados Unidos uma verdadeira mitologia em relação aos pais fundadores da pátria. Segundo Zinn, eles não buscavam o equilíbrio de poder, mas sim um mecanismo que desse o total controle à classe dominante da época. “O certo é que não queriam um equilíbrio igualitário entre escravos e patrões, entre os sem-terra e os latifundiários, entre os índios e os brancos”, escreveu. Os fundadores não levaram em conta as mulheres, que significavam a metade da população, mas sequer foram mencionadas na Declaração de Independência e estiveram ausentes da Constituição, sendo a parte invisível da nação.

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Duas guerras civis

A busca por uma sociedade mais justa foi intensa no final do século 19 nos Estados Unidos

A Guerra Civil ou da Secessão (1861-1865), apresentada como a da abolição da escravidão, teve um objetivo fundamental: o de transferir mais poder aos ricos do Norte, de modo especial aos monopólios. “Um governo assim”, afirma Zinn, “não aceitaria que fora uma revolta que pusera fim à escravidão. Só acabaria a escravidão em termos ditados pelos brancos, e somente quando o exigissem as necessidades políticas e econômicas da elite empresarial do Norte. Foi Abraham Lincoln quem combinou com perfeição as necessidades do empresariado, a ambição do novo Partido Republicano e a retórica do humanismo”. Libertos, os negros tiveram que se alistar no Exército e na Marinha. “Sem sua ajuda”, diz o historiador James McPherson, “o Norte não teria vencido a guerra da forma como o fez, e, talvez, simplesmente não a ganhasse”, menciona Zinn. Às vésperas da Guerra Civil, a escravidão já havia desaparecido em toda a América Latina, com exceção de Cuba (1886) e do Brasil (1888). Na década de 1870, quando os negros começaram a se organizar para exigir os direitos civis, a oligarquia branca do Sul usou de seu poder econômico preparando grupos racistas com práticas terroristas, como a Ku Klux Klan. “Aboliu-se a escravidão, porém, foi substituída por uma espécie de peonagem. Não se resolveu a posição dos negros na sociedade, de modo que, cem anos depois, eles não desfrutavam de todos os direitos que, ao parecer, a guerra lhes havia prometido." No centenário da independência (1876), uma “Declaração Negra da Independência” denunciou o Partido Republicano, que antes havia conclamado os votantes de cor a assumir uma posição política própria. A Declaração, entre outras coisas, dizia que o sistema atual “apresentou ao mundo o absurdo espetáculo de uma terrível guerra civil pela abolição da escravidão negra, enquanto a maioria da população branca (os brancos pobres) – aquela que criou a riqueza da nação – se vê obrigada a sofrer uma escravidão muito mais dolorida e humilhante”. O mais grave da guerra foi, talvez, o legado de ódio e amargura que sobreviveu à geração combatente, especialmente contra os negros. Quase cem anos depois, no começo de 1945, quando o Queen Mary zarpou carregado de soldados para a guerra na Europa, os negros foram postos na parte inferior do navio, perto das máquinas, enquanto os brancos respiravam o ar puro na escotilha.

A outra guerra civil é o termo utilizado por Zinn para analisar o incremento da luta de classes nos Estados Unidos ao longo de todo o século 19, ausente dos livros de história. Com a industrialização, aparecem os operários e o conflito capital versus trabalho.

As greves não são apenas por salário, mas também por redução de jornada laboral e direito à sindicalização. Em 1844, quatro anos antes do Manifesto Comunista, saiu no "Awl" o seguinte texto: “A divisão da sociedade entre as classes produtivas e as não-produtivas e a distribuição desigual do valor entre elas nos leva em seguida a outra distinção: a do capital e mão-de-obra (...) a mão-de-obra agora se converte em mercadoria (...) o capital e a mão-de-obra estão enfrentados .”

Algumas categorias, como as feministas, passaram a fazer greves exigindo não apenas salário igual para a mesma tarefa realizada, como também o fim da opressão sexual. Muitas delas se aliaram aos negros, enquanto alguns sindicatos de trabalhadores brancos exigiam que os trabalhadores de cor criassem os próprios na luta pela desigualdade racial e de gênero.

A busca por uma sociedade mais justa – vista como socialista – foi intensa no final do século 19 e principalmente no século 20 dentro dos Estados Unidos. Escritores famosos, como Upton Sinclair, Jack London, Theodore Dreiser, Frank Norris e outros, defendiam publicamente o socialismo, ao mesmo tempo em que atacavam violentamente o capitalismo. Parte dos trabalhadores, dando-se conta de que a raiz de sua miséria estava no sistema capitalista, começou a trabalhar por um novo tipo de sindicato. Em junho de 1905, na cidade de Chicago, cerca de duzentos socialistas, anarquistas e sindicalistas de todas as partes do país fundaram o Industrial Workers of the World (IWW), que liderou greves, marchas, concentrações, grupos de estudos e publicações, sendo sistematicamente atacado e perseguido pelo Estado. As mulheres socialistas, que formavam parte do movimento feminista, fizeram uma grande campanha pelo sufrágio universal e pela igualdade no casamento e na vida sexual. Margaret Sanger, no seu livro “Woman and the New Race”, mencionado por Zinn, afirmava que “nenhuma mulher pode considerar-se livre se não possui e controla seu próprio corpo. Nenhuma mulher pode se considerar livre até que possa escolher conscientemente se será mãe ou não”.

Embora as mulheres tenham conseguido o direito ao voto, e apenas em 1920, após a aprovação da 19ª Emenda Constitucional, muitas delas, como Emma Goldman, sabiam que apenas o sufrágio universal não as ajudaria em sua emancipação. Era fundamental continuar a luta – dizia Goldman – reafirmando sua personalidade, tendo direito sobre seu corpo, negando-se a ter filhos a não ser que os deseje, recusando-se a ser uma empregada de Deus, do Estado, da sociedade, de seu marido, de sua família, enfim, fazendo sua vida mais simples, porém, mais rica e profunda. Somente isso, e não o voto, libertará a mulher.

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O nacionalismo

O governo protegeu a indústria nacional de suas concorrentes estrangeiras, facilitou o surgimento dos monopólios, buscou mercados cativos para compra de matérias-primas e vendas de produtos manufaturados e lançou mão, principalmente no final do século 19 e início do 20, de estratégias como o panamericanismo, o big tick, a diplomacia do dólar e a boa vizinhança para exercer sua dominação sobre a América Latina. Além disso, serviu-se do nacionalismo para se fortalecer diante de problemas internos e externos. O historiador Richard Hofstadter, no seu livro “The American Political Tradition”, pesquisou os principais líderes nacionais, começando por Jefferson e Jackson, passando por Hoover e chegando a Theodore e Franklin Roosevelt; analisou republicanos, democratas, liberais e conservadores, chegando à conclusão de que “o alcance de visão (...) dos principais partidos sempre foi determinado pelos horizontes da propriedade e da empresa (...) pelas virtudes econômicas da cultura capitalista (...) Essa cultura tem sido intensamente nacionalista”.

As reformas de Roosevelt para salvar o capitalismo da grande crise foram importantes, mas não fundamentais. Na realidade, foi a Segunda Guerra Mundial que debilitou a velha militância trabalhista dos anos 1930, já que o conflito passou a gerar milhões de novos empregos com salários mais altos. O New Deal só havia reduzido o desemprego de 13 para 9 milhões de pessoas. Além disso, a guerra aumentou o patriotismo e a união de todas as classes para derrotar os inimigos externos, enfraquecendo assim a luta contra os monopólios e as greves por melhorias sociais. Em 1948, o Tratado de Ajuda Externa – conhecido como Plano Marshall – exigia dos que aceitassem a “ajuda” que comprassem produtos manufaturados dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que obrigavam as nações européias e suas colônias a abrirem seus mercados aos investidores americanos sobre uma base de igualdade.

Zinn termina seu livro mostrando que o Vietnã foi a primeira grande derrota do império global americano no pós-Segunda Guerra Mundial, o que se deveu à luta dos camponeses revolucionários e ao movimento de protestos dentro dos Estados Unidos. Analisa os novos movimentos de mulheres, negros, índios e carcereiros nos anos 1960 e 1970. Mostra como Watergate, com a saída de Nixon, deixou intacto o sistema, tanto que as multinacionais atuaram na queda de vários governos, principalmente na América Latina. Comenta o trabalho da Agência Central de Inteligência e da Comissão Trilateral, esta criada para favorecer a união entre Japão, Europa Ocidental e Estados Unidos na luta, não contra um comunismo monolítico, mas sim contra os movimentos revolucionários do Terceiro Mundo que questionavam o sistema capitalista. Não deixa de falar de Carter-Reagan-Bush e o consenso bipartidista.

Sem dúvida, trata-se de um grande livro para conhecer uma história que sempre nos foi contada de outra maneira. A obra foi escrita em poucos anos, mas o seu autor conta com mais de vinte de pesquisa e ensino e tantos outros de participação em movimentos sociais. Só assim se consegue escrever a outra história dos Estados Unidos.

Waldir José Rampinelli, professor de história da América na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com mestrado em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e doutorado pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP). Autor, entre outros, do livro “As Duas Faces da Moeda – as Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao Colonialismo Português”, Editora da UFSC, 2004.

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Fonte: http://www.an.com.br/anexo/2008/fev/10/0ide.jsp