sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Loucura eleitoral ao estilo americano

Loucura eleitoral ao estilo americano [originalmente publicado no dia 05/03/2008]

Historicamente, o governo — estivesse em mãos de republicanos ou de democratas, de conservadores de direita ou de liberais de esquerda — sempre fracassou quanto a assumir as próprias responsabilidades, até ser pressionado pela mobilização direta.

Howard Zinn*

Na Flórida há um homem que me escreve há anos (dez páginas manuscritas), apesar de que nunca nos encontramos. Ele me fala dos diversos trabalhos que já teve — guarda de segurança juramentado, técnico em consertos, etc. Já trabalhou de tudo que é jeito, à noite, de dia, conseguindo sustentar sua família com muita dificuldade. Suas cartas estão sempre cheias de raiva, lançam pragas contra nosso sistema capitalista, incapaz de garantir aos trabalhadores "a vida, a liberdade e a busca da felicidade".

Justamente hoje recebi uma de suas cartas, que por sorte não é manuscrita: agora ele usa o correio eletrônico. "Bom, hoje estou escrevendo porque neste país há uma situação calamitosa, que acho intolerável, e tenho que dizer algo sobre isso. Estou realmente enfurecido com esta crise das hipotecas. Estou irritado com isto de que a maioria dos norte-americanos tenham que viver suas vidas em condições de perpétuo endividamento e de que tantos estejam afundando sob tanto peso. Fico furioso, maldita seja! Hoje trabalhei como guarda juramentado, e minha tarefa foi vigiar uma casa que foi embargada e vai a leilão. Abriram a casa para os interessados e eu estava lá, para fazer a vigilância durante as visitas. No mesmo bairro estavam outros três guardas juramentados que faziam a mesma coisa em outras casas. Nos momentos calmos eu ficava ali sentado me perguntando quem seriam as pessoas despejadas e onde elas estariam agora".

No mesmo dia em que recebi a carta, o Boston Globe publicou um artigo intitulado "Milhares de casas embargadas em Massachussets em 2007". O subtítulo declara: "foram embargadas 7.563 casas, quase o triplo que em 2006". Poucas noites antes, a CBS tinha informado que 750.000 pessoas discapacitadas esperam há anos para receber seus pagamentos da assistência social, porque o sistema de previsão tem orçamento insuficiente e não há pessoal suficiente para atender todas as demandas, nem sequer as mais graves.

Histórias como estas podem até aparecer na mídia, mas desaparecem num piscar de olhos. O que não desaparece, o que mantém a imprensa ocupada dia após dia, impossível de ignorar, é o frenesi eleitoral.

Esta paixão toma conta do país a cada quatro anos, porque todos fomos educados na crença de que votar é fundamental para determinar nosso destino, que o ato mais importante que um cidadão pode realizar é ir às urnas, cada quatro anos, para eleger uma das duas mediocridades que já foram escolhidas para nós por outros. É um teste com respostas de seleção múltipla tão limitado, tão trapaceiro, que nenhum professor de respeito seria capaz de utilizá-lo como exame para seus alunos.

E é triste dizer isto, mas a disputa presidencial hipnotizou da mesma maneira a esquerda liberal e os radicais. Todos somos vulneráveis.

Será que é possível, nestes dias, encontrar os amigos e evitar o tema de conversa das eleições presidenciais?

As mesmas pessoas que deveriam estar mais atentas, as que nunca se cansam de criticar a pressão da mídia sobre a consciência nacional, percebem que estão paralisadas pela imprensa, grudadas na televisão, enquanto os candidatos dão tapinhas nas costas e sorriem enunciando uma infinidade de chavões com uma solenidade digna de poesia épica.

Nos chamados jornais de esquerda também, temos que admitir, se presta uma atenção desmedida ao exame minucioso dos principais candidatos. Ocasionalmente se dá uma olhadinha nos candidatos menores, apesar de que todo o mundo sabe que o nosso maravilhoso sistema político democrático não vai deixar que nenhum deles ultrapasse o marco da porta.

Não; não estou adotando uma postura de ultra-esquerda, segundo a qual as eleições seriam totalmente irrelevantes, ou seja que deveríamos nos recusar a votar para preservar a pureza da nossa moralidade. É claro que há candidatos que são um pouco melhores do que outros, e em certos momentos de crise nacional (os anos 30, por exemplo, ou hoje), mesmo uma diferença pequena entre os dois partidos pode ser uma questão de vida ou morte.

Do que estou falando é de um senso da proporção que desaparece com a loucura eleitoral. Você vai ficar do lado de um candidato e contra o outro? Sim, durante dois minutos; o tempo que basta para depositar a cédula na urna.

Mas antes e depois desses dois minutos, nosso tempo, nossa energia, precisamos dedicá-los a instruir, mobilizar, organizar nossos concidadãos em seus locais de trabalho, em nosso bairro, nas escolas. Nosso objetivo deveria ser construir, laboriosamente, pacientemente, mas energicamente, um movimento que, uma vez alcançada uma certa massa crítica, pudesse ter influência sobre qualquer um que estiver na Casa Branca ou no Congresso, para impor uma virada na política nacional nas questões da guerra e da justiça social.

É preciso lembrar que mesmo quando existe um candidato claramente melhor (sim, melhor Roosevelt que Hoover; melhor qualquer um do que Bush), essa diferença vai ficar em nada, a menos que o poder do povo esteja tão firme que para os ocupantes da Casa Branca se torne muito difícil ignorá-lo.

As políticas sem precedentes do New Deal –assistência social, seguro desemprego, criação de vagas de emprego, salário mínimo, subvenções para habitação— não foram simplesmente o resultado da postura progressista de Roosevelt. A administração Roosevelt, quando chegou ao poder, encontrou uma nação efervescente de agitação. O último ano da administração Hoover tinha visto a rebelião do Bônus Army: milhares de veteranos da primeira guerra mundial marcharam sobre Washington para exigir ajudas ao Congresso porque suas famílias estavam passando fome. Houve manifestações de desempregados em Detroit, Chicago, Boston, Nova York e Seattle.

Em 1934, no início do período presidencial de Roosevelt, ocorreram greves em todo o país, incluída uma greve geral em Mineapolis, uma greve geral em San Francisco, centenas de milhares de pessoas cruzaram os braços nas fábricas de têxteis do Sul. Por todo o país surgiram conselhos de operários desempregados. As pessoas, desesperadas, mobilizaram-se de maneira autônoma, obrigando a polícia recolocar os móveis dentro das casas dos locatários despejados e criando organizações de auto-ajuda com centenas de milhares de membros.

Sem uma crise nacional –pauperização econômica e rebelião—, dificilmente a administração Roosevelt teria empreendido aquelas valentes reformas.

Hoje podemos estar certos de que o Partido Democrata, a menos que se enfrente a uma sublevação popular, não vai sair do centro. Os dois principais candidatos à presidência deixaram claro que, se forem eleitos, nem vão acabar com a guerra do Iraque imediatamente, nem vão instituir um sistema de assistência sanitária gratuita para todos.

Não oferecem uma mudança radical com respeito ao statu quo.

Suas propostas não são nada do que o desespero popular exige com urgência, ou seja: a garantia do governo de um trabalho para todos aqueles que precisam, uma renda mínima para todas as famílias, uma ajuda para aqueles que correm risco de ser despejados e ter suas casas leiloadas.

Não sugerem recortes significativos dos gastos militares ou reformas radicais no sistema fiscal que poderiam liberar bilhões, ou até trilhões, para destiná-los a programas sociais para transformar nosso modo de vida.

Nada disto deveria nos causar assombro. O Partido Democrata só rompe com seu conservadorismo histórico, com seu desejo de satisfazer os ricos, com sua predileção pela guerra, quando se encontra com uma rebelião dos de baixo, como aconteceu nos anos 1930 e nos anos 1960. Não deveríamos esperar que uma vitória nas urnas comece a curar o país de suas duas doenças fundamentais: a cobiça do capitalismo e o militarismo.

Por isso, deveríamos nos libertar da loucura eleitoral em que está submersa toda a sociedade, incluída a esquerda.

Sim. Dois minutos. Antes e depois temos que nos mobilizar pessoalmente contra todos os obstáculos que atravessam o caminho da vida, da liberdade e da busca da felicidade.

Por exemplo, os embargos que estão privando milhões de pessoas de suas casas deveriam nos fazer lembrar de uma situação muito parecida ocorrida após a guerra revolucionária [de Independência], quando os pequenos granjeiros, muitos deles veteranos da guerra (como são também hoje muitos dos sem-teto) não podiam se permitir pagar os impostos e foram ameaçados de perder suas terras e suas casas. Eles se reuniram em milhares diante das cortes de justiça e impediram a execução dos leilões.

Hoje, o despejo das pessoas que não conseguem pagar seus aluguéis deveria trazer à nossa memória o que fizeram as pessoas nos anos 1930, quando se mobilizaram e, desafiando as autoridades, fizeram com que os pertences das famílias despejadas fossem colocados novamente em suas casas.

Historicamente, o governo —estivesse em mãos de republicanos ou de democratas, de conservadores de direita ou de liberais de esquerda— sempre fracassou quanto a assumir as próprias responsabilidades, até ser pressionado pela mobilização direta: manifestações de todo tipo pelos direitos dos negros, greves e boicotes pelos direitos dos trabalhadores, rebeliões e deserções dos soldados para terminar com a guerra. Votar é um gesto fácil e de utilidade marginal, mas é um pobre substituto da democracia, que exige a ação direta de cidadãos comprometidos.

* Howard Zinn é co-autor, junto com Anthony Arnove, de Voices of a People's History of the United States. Seu livro mais recente é A Power Governments Cannot Suppress (Um poder que os governos não podem suprimir).


Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

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