Pelos breves momentos de solidariedade
As omissões da história oficial norte-americana oferecem uma imagem distorcida do passado e induzem ao erro em relação ao presente. O futuro se encontra mais em alguns episódios de resistência que foram enterrados do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias
Howard Zinn
Por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados
No final da década de 70, quando decidi me lançar a este projeto (o de escrever A People’s History of the United States), já fazia vinte anos que ensinava história no Spellman College, uma universidade para moças negras, em Atlanta. Antes, participara do movimento pelos direitos civis, no sul dos Estados Unidos. Seguiram-se dez anos de luta contra a guerra do Vietnã. Em matéria de “neutralidade”, é pouco o que essas experiências contribuem para com um historiador, seja ele professor, ou escritor.
Entretanto, meu senso crítico já se desenvolvera bem antes, pois fui educado numa família de imigrantes da classe operária, em Nova York; depois, por três anos, trabalhando num estaleiro naval e em seguida, durante a II Guerra Mundial, pela experiência a bordo de um avião bombardeiro da Força Aérea que decolava da Inglaterra para lançar bombas na Europa, inclusive na costa atlântica da França.
Terminada a guerra, fui beneficiado pela medida que permitiu o acesso à educação superior gratuita a milhões de ex-combatentes, entre os quais todos os filhos de trabalhadores que, sem essa sorte, não teriam podido pagar por seus estudos1. Fiz minha tese de doutorado na Universidade de Columbia, mas, graças à minha experiência de vida, sabia que o que aprendera na faculdade descartava alguns elementos cruciais da história dos Estados Unidos.
Sem ilusões sobre a objetividade
Quando comecei a dar aulas e a escrever, não alimentava quaisquer ilusões sobre o que era “a objetividade”: evitar manifestar um ponto de vista. Eu sabia, na verdade, que um historiador (ou um jornalista, ou qualquer pessoa que conte uma história) é obrigado a optar, em meio a um número infinito de fatos, entre os que devem ser apresentados e os que convém que sejam omitidos. E que, ao fazê-lo, de maneira consciente ou inconsciente, ele reflete seus interesses.
Alguns professores e políticos repetem, insistentemente, que os alunos devem “aprender os fatos”. Isso me recorda a figura pedante de Gradgrind, no livro Hard Times, de Dickens, repreendendo um jovem professor: “Ensine somente os fatos, os fatos, os fatos.” No entanto, por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, por um escritor ou por qualquer pessoa, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados.
Na história oficial, que domina a cultura norte-americana, existem, em minha opinião, questões de uma importância fundamental que não consigo encontrar. Essas omissões nos oferecem uma imagem distorcida do passado, mas – o que é mais grave – nos induzem ao erro em relação ao presente.
O “interesse comum”
Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje
Tomemos, por exemplo, a noção de classe social. A cultura dominante (presente na educação, na vida política, nos meios de comunicação) sugere que nossa sociedade seria desprovida de classes e que temos um único interesse, o interesse comum. No preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consta: “We, the people” (Nós, o povo). Trata-se de uma expressão enganosa. Em 1787, a Constituição foi redigida, na realidade, por 55 homens, todos brancos, todos senhores de escravos ou comerciantes dispostos a criar um tipo de autoridade capaz de defender os interesses de sua classe.
Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje. A linguagem normalmente utilizada leva a crer que todos (ricos, pobres e classe média) têm um interesse comum. Quando se fala da nação, por exemplo, utilizam-se termos universais. Quando declara, sorridente, que nossa economia “vai bem”, o presidente não está levando em consideração que 50 milhões de pessoas fazem o que podem para sobreviver, enquanto a classe média vai se virando e o 1% da população que detém 40% da riqueza da nação, esse sim, de fato, vai muito bem.
Ação maciça de mentiras
O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”. Minha própria experiência da guerra, assim como a história de todas as intervenções militares norte-americanas, desperta meu ceticismo sempre que ouço algum alto dirigente falar do “interesse nacional” ou da “segurança nacional” para justificar suas políticas. Foi com justificativas desse tipo que Harry Truman lançou, em 1950, o que chamou uma “ação de polícia” na Coréia e que fez vários milhões de vítimas; que Lyndon Johnson e Richard Nixon travaram, na Indochina, outra guerra igualmente sangrenta; que Ronald Reagan invadiu a ilha de Granada em 1983; que o pai do atual presidente bombardeou o Panamá, em 1989, e o Iraque, dois anos depois; e que William Clinton, por sua vez, também bombardeou o Iraque em 1993.
O “novo Bush” nos explicou que iria, em nome do interesse nacional, invadir e bombardear o Iraque. A idéia era tão absurda que só conseguiu ser aceita nos Estados Unidos devido à ação maciça de mentiras que, desfechadas pelo governo e pelos meios de comunicação, envolveram o país inteiro. Mentiras a respeito das “armas de destruição em massa”, mentiras a respeito de vínculos entre o Iraque e a Al-Qaida... O número crescente de norte-americanos que começam a perceber a amplitude dessa falsidade explica a atual queda de popularidade de George W. Bush. E esse recuo ocorre apesar da estreita colaboração entre o governo e os meios de comunicação, o que, em geral, caracteriza muito mais um Estado totalitário do que uma democracia.
Fatos silenciados
O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”
A perspectiva de uma guerra breve e indolor já se evaporou. Várias centenas de soldados norte-americanos morreram e mais de mil, talvez dois mil, foram feridos. Num canal insignificante da televisão a cabo (uma grande emissora não divulgaria esse tipo de coisa), a atriz Cher contou o que viu quando foi, recentemente, a um hospital de Washington: combatentes que haviam perdido os braços, ou as pernas, homens muito jovens mutilados para o resto da vida. E Cher resolveu questionar os motivos para esta guerra.
Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação. Tais como, por exemplo, os cerca de 30 mil civis iraquianos que foram mortos durante operações breves, mas sangrentas. Graças à Internet e às estações de rádio progressistas, estamos também tentando explicar as modalidades de ocupação do Iraque: a invasão violenta dos lares, a prisão de inocentes – de todas as idades –, ou o lançamento de bombas de 250 e de 500 quilos sobre bairros residenciais.
Fervor nacionalista
Quando decidi escrever A People’s History of the United States, optei por contar a história das guerras da nação, mas não a partir da perspectiva dos generais ou dos líderes políticos e, sim, da visão de jovens trabalhadores transformados em soldados e de seus pais e esposas que, um belo dia, recebiam telegramas com tarjas pretas nas bordas. Queria contar a história das guerras norte-americanas, mas do ponto de vista dos “inimigos”: os mexicanos, cujo país foi invadido, os cubanos, cujo território foi anexado em 1898, os filipinos, submetidos a uma guerra abominável e devastadora no início do século XX – durante a qual morreram 600 mil pessoas que se opunham aos Estados Unidos, determinados, na época, a conquistar o país.
Um fenômeno me incomodou desde que comecei a estudar história. E agora tento explicá-lo em meus livros. É o modo pelo qual o fervor nacionalista (que nos inculcam desde a infância, impondo-nos o juramento de fidelidade à bandeira2 , a veneração do hino nacional e uma retórica “patriótica” muito dirigida) impregna o sistema educacional de todos os países. Fico me perguntando o que seria a política externa dos Estados Unidos se fossem apagadas, pelo menos de nossos espíritos, todas as fronteiras do mundo e considerássemos cada criança como nosso filho, fosse ele de onde fosse. Nessa situação, seria impensável jogar uma bomba atômica em Hiroshima, ou napalm no Vietnã, no Afeganistão ou no Iraque.
Um genocídio apagado
Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação
Quando assumi a redação de meu livro, estava sob a influência do que vivera até então: primeiramente morando com meus pais, numa comunidade negra do sul do país; depois, ensinando numa universidade de moças negras e militando contra a segregação racial. Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca. É verdade que os índios são mencionados, ainda que como figurantes, e rapidamente esquecidos; os negros têm direito a uma aparição, como escravos, depois como homens supostamente libertados. Mas o papel principal é sempre do homem branco.
Da escola primária ao ginasial, ninguém permitiu que eu entendesse a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo como sinônimo de um genocídio que exterminou a população indígena de Hispaniola3. Ninguém me explicou que se tratava da primeira etapa da expansão, supostamente generosa, de uma nova nação, mas que essa expansão significava, na realidade, a expulsão brutal dos índios de quase todo o continente, que ela seria edificada sobre terríveis atrocidades, ao final das quais os sobreviventes seriam mantidos em reservas.
“Era progreessista”
Ensina-se a todos os alunos das escolas norte-americanas o massacre de Boston, que ocorreu às vésperas da guerra da independência contra a coroa inglesa. Cinco cidadãos norte-americanos foram mortos, nessa ocasião, em 1770, por soldados britânicos. Mas quantos alunos sabem que 600 pessoas da tribo dos Péquot (homens, mulheres e crianças), na Nova Inglaterra, foram massacradas em 1637? Ou que centenas de famílias indígenas foram dizimadas, durante a guerra da Secessão, no Colorado, por soldados norte-americanos?
Durante o tempo em que estudei história, nunca ouvi falar dos constantes massacres de negros, perpetrados no silêncio ensurdecedor de um governo assoberbado em seu orgulho de possuir uma Constituição que garante a igualdade de direitos. Em 1917, por exemplo, estourou na Zona Leste da cidade de Saint Louis uma das inúmeras revoltas raciais do período que nossos livros de história (dos brancos) chamam a “era progressista”. Operários brancos, indignados com a chegada de operários negros, assassinaram cerca de 200 pessoas. Um negro norte-americano, W.E.B. Du Bois, escreveu um artigo célebre sobre o assunto, “The Massacre of East St. Louis”. Na época, Josephine Baker declarou: “A própria idéia dos Estados Unidos da América me faz tremer.”
Uma história escondida
Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca
Ao escrever A People’s History of the United States, eu esperava desfechar uma conscientização dos conflitos de classe, da injustiça racial, da desigualdade dos sexos e da arrogância norte-americana. Mas também queria expor a resistência ao poder do establishment, a recusa dos índios em morrer e desaparecer, a rebelião dos negros contra a escravatura e, depois, contra a segregação, as greves organizadas pela classe operária.
Isto porque, omitir essas ações de resistência, essas vitórias – ainda que limitadas – dos “João Ninguém” norte-americanos, significaria fazer crer que o poder está exclusivamente nas mãos dos que têm armas de fogo ou possuem riquezas. Tentei lembrar que as pessoas que aparentemente nada possuem (trabalhadores, negros, mulheres), quando se organizam e protestam em escala nacional, assumem um poder que governo algum pode reprimir com facilidade. Não quero inventar vitórias populares onde elas não existem. Mas achar que escrever um livro de história se resume a enumerar uma ladainha de fracassos significa fazer dos historiadores meros colaboradores de uma espiral regressiva, aparentemente inexorável.
Se a história pretende ser criativa, antecipando um futuro possível sem, entretanto, negar o passado, é necessário, em minha opinião, destacar as novas possibilidades e revelar todos esses episódios enterrados, por ocasião dos quais muitas pessoas mostraram sua capacidade de resistir, ainda que às vezes de forma breve, de se unir – e, às vezes, de vencer. Parto do pressuposto, ou talvez da esperança, de que nosso futuro se encontra mais nos momentos de solidariedade escondidos em nosso passado do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias.
(Trad.: Jô Amado)
1 - No dia 22 de junho de 1944, foi aprovada nos Estados Unidos a GI Bill (Lei do Soldado), que tinha por objetivo “oferecer uma ajuda do governo federal aos ex-combatentes da II Guerra Mundial que desejassem desenvolver uma profissão na vida civil”. Esse programa (uma espécie de ensino gratuito) abriria as portas da universidade a muitos cidadãos norte-americanos de origem humilde. Nos dias de hoje, o cumprimento do serviço militar muitas vezes é um meio que permite a cidadãos menos favorecidos freqüentarem, posteriormente, um curso superior, o que de outra forma lhes seria impossível, devido aos preços inacessíveis das universidades nos Estados Unidos.
2 - N.R.: O juramento, que é recitado em todas as escolas norte-americanas, proclama a fidelidade “à bandeira dos Estados Unidos e à República, da qual é o símbolo. Uma nação indivisível, dirigida por Deus (under God), com liberdade e justiça para todos”.
3 - A Ilha de São Domingos (atualmente, República Dominicana e Haiti).
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