domingo, 8 de novembro de 2009

Guerra e prêmios da paz

Fiquei consternado quando soube que Barack Obama recebeu o prémio Nobel da Paz. Um choque, realmente, pensar que um presidente que leva a cabo duas guerras receberia um prémio da paz. Até que me lembrei que Woodrow Wilson, Theodore Roosevelt e Henry Kissinger tinham, todos, recebido prémios Nobel da Paz. O comité Nobel é famoso pelas suas avaliações superficiais, por se deixar conquistar pela retórica e por gestos vazios, e ignorar óbvias violações da paz mundial.



Sim, Wilson recebe crédito pela Liga das Nações - esse corpo ineficiente que não fez nada para prevenir a guerra. Mas ele tinha bombardeado a costa mexicana, enviado tropas para ocupar o Haiti e a República Dominicana, e levado os EUA para o matadouro da Primeira Guerra Mundial na Europa, seguramente entre as mais estúpidas e mortíferas guerras.



Certo, Theodore Roosevelt negociou a paz entre o Japão e a Rússia. Mas era um amante da guerra, que participou da conquista de Cuba pelos EUA, fingindo libertá-la da Espanha, enquanto apertava os grilhões estadunidenses sobre essa pequena ilha. E, como presidente, presidiu à guerra sangrenta para subjugar os filipinos, felicitando mesmo um general estadunidenses que tinha acabado de massacrar 600 aldeões indefesos nas Filipinas. O comité não deu o prémio Nobel a Mark Twain, que denunciou Roosevelt e que criticou a guerra, nem a William James, dirigente da liga anti-imperialista.



Ah! sim, o comité achou apropriado dar um prémio da paz a Henry Kissinger, porque ele assinou o acordo final que pôs fim à guerra do Vietname, da qual fora um dos arquitetos. Kissinger, que acompanhou obsequiosamente a expansão da guerra de Nixon com o bombardeamento de aldeias camponesas no Vietname, no Laos e no Camboja. Kissinger, que se coaduna perfeitamente com a definição do criminoso de guerra, teve um prémio da paz!


As pessoas deveriam receber um prémio da paz não com base em promessas que tenham feito - tal como Obama, um eloquente fazedor de promessas -, mas com base em feitos reais no sentido de acabar com a guerra; e Obama tem prosseguido as acções militares mortíferas e desumanas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão.




O comité Nobel da paz deveria retirar-se e entregar os seus enormes fundos a alguma organização internacional da paz que não seja assombrada pelo estrelato e pela retórica, e que tenha alguma compreensão da história.



Howard Zin



FONTE: http://wwweidosinfozine.blogspot.com/2009/11/eidos-info-zine-20.html

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Howard Zinn comenta Marx – “Je ne suis pas marxiste”

Este artigo de Howard Zinn apareceu pela primeira vez na revista Z Magazine em 1988. Questionando tanto os que não se cansam de declarar que “Marx está morto” quanto os que gostariam de utilizar sua visão de uma nova sociedade para algum governo ditatorial, este texto do autor de Você não pode ser neutro num trem em movimento continua atual e lúcido.

Tradução: Nils Skare

Há pouco tempo alguém se referiu a mim como um “professor marxista”. Na verdade, duas pessoas o fizeram. Um foi o porta-voz da “Exatidão na Academia”, preocupada que existem “cinco mil membros de faculdade marxistas” nos Estados Unidos (o que diminuiu minha importância, mas também minha solidão). O outro foi um antigo aluno que encontrei num avião rumo a Nova York, um colega de viagem. Me senti um pouco honrado. Um “marxista” significa um cara durão (o que compensa a conotação molenga de um “professor”), uma pessoa de políticas formidáveis, alguém com quem não se pode meter, alguém que sabe a diferença entre mais-valia absoluta e relativa, o que é fetichismo da mercadoria e se recusa a comprá-lo.

Karl Marx: News of the Coming Revolt
Eu também me vi surpreso, um pouco tenso (algo que os praticantes de ioga compreendem que não é bom). Será que “marxista” sugeria que eu tinha uma pequena estátua de Lenin na minha gaveta e esfregava sua cabeça para descobrir qual política seguir para intensificar as contradições no campo imperialista, ou quais canções cantar se fossemos mandados para um campo de concentração?

Além disso me lembrei da famosa afirmação de Marx: “Je ne suis pas marxiste”. Sempre me perguntei por que Marx, um alemão que falava inglês e havia estudado grego para sua tese de doutorado, faria uma afirmação tão importante em francês. Mas estou seguro que ele a fez, e creio que sei o que o levou a fazê-la. Após Marx e sua esposa Jenny se mudarem para Londres, onde três de seus seis filhos morreram de doença, e onde viveram em meio à pobreza, eles eram frequentemente visitados por um jovem refugiado alemão chamado Pieper. Esse sujeito era um total “mala” (há “malas” por todo o espectro político colocados a 5 metros de distância um do outro, mas há um Mala de Esquerda especial, à serviço da polícia, para deixar os revolucionários birutas). Pieper (juro, eu não o inventei) voava ao redor de Marx sempre em admiração, e uma vez se ofereceu para traduzir o Das Kapital para o inglês – que ele mal conseguia falar – e vivia montando Clubes de Karl Marx, exasperando Marx mais e mais, insistindo que cada palavra que Marx soltava era sagrada. Um dia Marx deixou Pieper com uma congestão quando disse a ele: “Obrigado por me convidar para falar em seu Clube de Karl Marx. Mas não posso. Eu não sou um marxista.”

Esse foi um ponto alto na vida de Marx, e também um bom ponto de partida para considerar as idéias de Marx seriamente sem se tornar um Piepet (ou um Stálin ou um Kim Il Sung, ou um marxista renascido que argumenta que cada palavra nos volumes Um, Dois e Três, e especialmente no Grundrisse é inquestionavelmente verdade). Porque me parece (correndo o risco de ver meu nome incluso na segunda edição do Registro de Marxistas, vivos ou mortos de Norman Pudhoretz) Marx tinha algumas idéias bastante úteis.

Por exemplo, encontramos no curto mas poderoso Teses contra Feuerbach de Marx a idéia de que os filósofos, que sempre consideraram sua tarefa interpretar o mundo, deveriam agora se pôr a transformá-lo, em seus escritos e em suas vidas.

Marx deu um bom exemplo. Enquanto a história o trata como um erudito sedentário, que passava todo seu tempo na biblioteca do Museu Britânico, Marx foi um ativista incansável por toda sua vida. Foi expulso da Alemanha, da Bélgica, da França e colocado sob julgamento em Colônia.

Exilado em Londres, manteve seus laços com os movimentos revolucionários de todo o mundo. Os apartamentos empobrecidos que ele e Jenny Marx, e suas crianças, habitavam, tornaram-se centro de atividade política, lugares de reunião para refugiados do continente.

É verdade, muitos de seus escritos eram impossivelmente abstratos (especialmente aqueles sobre política econômica; minha pobre cabeça, aos dezenove, boiava, ou melhor dizendo, afundava, em renda da terra e renda diferencial, a queda constante dos lucros e a composição orgânica do capital). Mas ele se distanciava disso constantemente para confrontar os eventos de seu tempo, para escrever sobre as revoluções de 1848, a Comuna de Paris, as rebeliões na Índia, a Guerra Civil nos Estados Unidos.

Os manuscritos que ele escreveu aos vinte e cinco anos no exílio em Paris (onde ficava nos cafés com Engels, Proudhon, Bakunin, Heine, Stirner) frequentemente desdenhados pelos fundamentalistas linha-dura como “imaturos”, contêm algumas de suas idéias mais profundas. Sua crítica do capitalismo nesses Manuscritos Econômico-Filosóficos não precisavam de provas matemáticas da “mais-valia”. Simplesmente afirmava (mas não afirmava simplesmente) que o sistema capitalista viola o que quer que seja ser humano. O sistema industrial que Marx viu se desenvolvendo na Europa não apenas os roubava do produto de seu trabalho, ele alienava os trabalhadores de suas próprias possibilidades criativas, uns dos outros como seres humanos, da beleza da natureza, de si mesmos. Eles viviam suas vidas não de acordo com suas próprias necessidades internas, mas de acordo com as necessidades de sobrevivência.

Essa alienação de si e dos outros, essa alienação de tudo que era humano, não poderia ser vencida por um esforço intelectual, por algo na mente. O que era necessário era uma mudança fundamental, revolucionária na sociedade; para criar as condições – um dia de trabalho curto, um uso racional da riqueza da terra e os talentos naturais das pessoas, uma distribuição justa dos frutos do trabalho humano, uma nova consciência social – para o florescimento do potencial humano, para um salto até a liberdade como ela nunca havia sido experimentada na história.

Marx compreendia o quanto era difícil alcançar isso, porque, não importa quão “revolucionários” sejamos, o peso da tradição, do costume, a des-educação acumulada de gerações, “pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”.

Marx compreendia a política. Ele via que por trás dos conflitos políticos estavam questões de classe: quem fica com o que. Por trás de bolhas benignas em que se estaria junto (Nós o povo… nosso país… segurança nacional), os poderosos e ricos legislariam em seu próprio benefício. Ele observou (no Dezoito Brumário, uma análise brilhante e mordaz da tomada de poder napoleônica após a revolução de 1848 na França), como uma constituição moderna pode proclamar direito absolutos, que então eram limitados por notas marginais (ele poderia estar mesmo prevendo as torturadas construções da Primeira Emenda de nossa Constituição), refletindo a realidade da dominação de uma classe por outra independentemente do que estivesse escrito.

Ele via a religião não apenas negativamente como “o ópio do povo”, mas positivamente como o “suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, a alma de condições desalmadas.” Isso nos ajuda a compreender o apelo de massa de charlatães religiosos nas telas de televisão, e ao mesmo tempo o trabalho da Teologia da Libertação em unir a espiritualidade da religião com a energia do movimento revolucionário em países extremamente pobres.

Marx estava frequentemente errado, era muito dogmático, frequentemente um “marxista”. Ele por vezes aceitava demais a dominação imperial como “progressista”, uma maneira mais rápida de levar o capitalismo ao terceiro mundo, e portanto adiantar – assim ele acreditava – o caminho para o socialismo. (Mas ele apoiava firmemente as rebeliões dos irlandeses, dos polacos, dos indianos, dos chineses contra o controle colonial).

Ele insistia demais que a classe trabalhadora industrial deveria ser o agente da revolução, e que isso deveria ocorrer nos países capitalistas avançados. Ele era desnecessariamente denso em suas análises econômicas (tempo demais nas universidades alemãs, talvez) enquanto seu insight claro e simples quanto à exploração bastava: que não importava quão valiosas fossem as coisas que os trabalhadores produziam, aqueles que controlavam a economia poderiam pagar a eles o mínimo que quisessem, e se enriquecer com a diferença.

Pessoalmente, Marx era charmoso, generoso e disposto a se sacrificar; e ao mesmo tempo arrogante, cabeça dura e abusivo. Ele amava sua esposa e seus filhos, e eles claramente o adoravam, mas ele pode também ter sido o pai do filho da empregada alemã deles, Lenchen.

O anarquista Bakunin, seu rival na Associação Internacional dos Trabalhadores, disse de Marx: “O admiro por seu conhecimento e sua devoção apaixonada e zelosa pela causa do proletariado. Mas… nossos temperamentos não se harmonizavam. Ele me chamava de um idealista sentimental, e ele estava certo. E eu o chamava de vaidoso, traiçoeiro e rabugento, e eu estava certo.” A filha de Marx, Eleanor, por outro lado, chamou seu pai de “uma das almas mais alegres, divertidas que já respiraram, um homem transbordante de humor.”

Ele sintetizava seu próprio alerta de que as pessoas, por mais avançadas que fossem em seus pensamentos, eram seguradas pelas limitações de seu tempo. Ainda assim, Marx forneceu poderosos insights, e inspiradoras visões. Não consigo imaginar Karl Marx contente com o “socialismo” da União Soviética. Ele seria um dissidente em Moscou, gosto de pensar. Sua idéia de uma “ditadura do proletariado” era a comuna de Paris de 1871, onde discussões nas ruas e nos salões da cidade forneciam a vitalidade uma democracia “debaixo para cima”; onde governantes supervisores eram imediatamente expulsos do governo pelo voto popular; onde os salários dos líderes do governo não podiam exceder o dos trabalhadores comuns; onde a guilhotina foi destruída como um símbolo da pena de morte. Marx escreveu certa vez no New York Tribune que não podia ver como a pena de morte poderia ser justificada “em qualquer sociedade que se julgasse civilizada.”

Talvez a mais preciosa herança do pensamento de Marx seja seu internacionalismo, sua hostilidade ao estado nação, sua insistência de que as pessoas comuns não têm nação a quem devam obedecer e se sacrificar em guerras, que estamos todos ligados uns aos outros pelo globo como seres humanos. Esse é não apenas um desafio direto ao moderno capitalismo nacionalista, com suas abomináveis evocações de ódio ao “inimigo” exterior, e sua falsa criação de um interesse comum para todos dentro de suas fronteiras artificiais. É também uma rejeição do nacionalismo estreito do estados “marxistas” contemporâneos, seja a União Soviética, seja a China ou qualquer outro.

Marx tinha algo importante para dizer não apenas como crítico do capitalismo, mas como um alerta aos revolucionários que, ele escreveu na Ideologia Alemã, deveriam revolucionarizar a si mesmos se queriam fazer isso com a sociedade. Ele ofereceu um antídoto ao dogmáticos, aos linha-duras, aos Piepers, aos Stálins, aos comissários, aos “marxistas”. Ele disse: “Nada humano me é estranho.”

Esse parece ser um bom começo para mudar o mundo.

sábado, 21 de março de 2009

Howard Zinn - entrevista (Goatmilk)

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Esta entrevista foi realizada por Wajahat Ali em 2008, antes da eleição de Barak Obama.

ALI: Suas experiências e atos de desobediência civil no Colégio de Spelman são, a esta altura, muito conhecidos. Entretanto, no século XXI, pode-se ver observar o corpo estudantil de muitos campi de faculdades liberais e ver que o protesto vivaz e a consciência foram substituídos pela apatia e o materialismo. Onde esse espírito de luta foi parar? Você se pronunciou contra o “desencorajamento” na fala de abertura do ano de 2005 na Universidade de Spelman – e quanto a agora?

ZINN: O que você descreve como a diferença entre os anos sessenta e agora nos campi é verdade, mas eu não iria longe demais com isso. Há grupos em campi por todo o país trabalhando contra a guerra, mas são pequenos até agora. Lembre-se, a escala do envolvimento no Vietnã era maior – 500 mil soldados contra 130 mil no Iraque. Após cinco anos de Vietnã havia 30 mil americanos mortos, ao passo que hoje temos 4 mil mortos. O alistamento obrigatório ameaçava os jovens, hoje não. Há maior controle pelo establishment da mídia hoje em dia, que não está mostrando os horrores infligidos no povo do Iraque assim como a mídia norte-americana começou a mostrar atrocidades como o massacre de My Lai. No caso do movimento contra a Guerra do Vietnã, houve a radicalização imediata da experiência do Movimento dos Direitos Civis pela igualdade racial, cuja energia e indignação levou adiante o movimento estudantil contra a Guerra do Vietnã. Nenhum influxo comparável existe hoje. E sim, há mais materialismo, mais insegurança econômica para os jovens que vão à universidade – custos enormes de taxas escolares pressionam os estudantes a se concentrarem só nos estudos e irem bem na escola.

ALI: Você esteve profundamente envolvido no Movimento dos Direitos Civis que lidou não apenas com igualdade racial, mas também um re-exame do política estrangeira dos Estados Unidos e da retirada da brutal Guerra do Vietnã. Aqui estamos em 2008 com uma ocupação aparentemente sem fim, e alguns diriam ilegal, do Iraque. “Racismo” emergiu como um tópico de contenda devido à candidatura para presidente de Obama e comentários controversos de seu reverendo. No entanto, a maioria diz que ele e outros candidatos “falam bonito” mas não estão dispostos a confrontar fundamentalmente e mudar os problemas de raça e política estrangeira. Como alguém que tem observado o clima sócio-político dos movimentos populares desde 1960, o que mudou (se algo mudou) em relação à equanimidade racial, e humanização de não-americanos, o “outro estrangeiro”?

ZINN: O Movimento dos Direitos Civis foi uma experiência educativa para muitos americanos. O resultado foi mais oportunidades para uma pequena porcentagem de negros, talvez 10% ou 20%, então, jovens negros indo à universidade e entrando em profissões. Uma maior consciência entre brancos – não todos, mas muitos – do racismo. Para a maioria dos negros, entretanto, ainda há pobreza e sofrimento. Os guetos ainda existem, e a proporção de negros na prisão ainda é muito maior do que a de brancos. Hoje, há menos racismo aberto, mas as injustiças econômicas criaram um “racismo institucional” que existe mesmo quando há negros em posições superiores, como Condoleeza Rice na administração Bush e Obama candidato a presidente.

Infelizmente, a maior consciência entre brancos sobre a igualdade dos negros não foi levada para as novas vítimas do racismo – muçulmanos e imigrantes. Não há equanimidade racial para esses grupos, que é enorme. Milhões de muçulmanos e um igual número de imigrantes que, legais ou ilegais, enfrentam a discriminação tanto legalmente por parte do governo quanto extra-legalmente por parte dos americanos brancos – e às vezes americanos negros e hispânicos. Os candidatos presidenciais democratas estão evitando esses assuntos para cultivar apoiar entre os americanos brancos.

Isso é vergonhoso, especialmente para Obama, que deveria usar sua experiência como negro para educar o público sobre discriminação e racismo. Ele é cauteloso em fazer afirmações fortes sobre esses assuntos e política estrangeira. Então, mantendo-se em linha com a tradição de cautela e timidez do Partido Democrata, ele adota posições levemente à esquerda dos Republicanos, mas muito aquém do que seria uma política esclarecida.

ALI: Você disse que o espírito democrático do povo americano é melhor representado quando pessoas protestam e expressam suas opiniões fora da Casa Branca. Como essa natureza de dissenso e protesto serve como o baluarte de uma democracia e uma sociedade civil saudável e funcionando? Muitos argumentariam que isso divide as coisas, ou não?

ZINN: Sim, dissenso e protesto dividem, mas de uma forma boa, porque representam de maneira acurada as divisões reais na sociedade. Essas divisões existem – os ricos, os pobres – se há dissenso ou não, mas quando há dissenso, há mudança. O dissenso tem a possibilidade não de acabar com a divisão na sociedade, mas mudar a realidade da divisão. Mudar a balança do poder em prol dos pobres e oprimidos.

ALI: Uma História do Povo dos Estados Unidos é considerado agora uma obra seminal, ensinada em colégios e universidades por todo o país. Por que você acha que a obra tem tal poder duradouro, tanta influência?

ZINN: Porque preenche uma necessidade, porque há um enorme vazio de verdade nos textos históricos tradicionais. E porque pessoas que conseguem alguma compreensão por si mesmas que há algo de errado na sociedade, ela buscam algo para sua nova consciência; seus novos sentimentos para serem representados por uma história mais honesta.

ALI: Votos de minorias, como hispânicos católicos, foram fundamentais para Bush em 2002, e alguns filhos de imigrantes tem uma raiva e um desdém virulentos contra imigrantes “ilegais”. Parece que muitas vozes marginalizadas esqueceram sua história e agora estão do lado daqueles que tencionam ativamente mantê-los ou às margens ou de alguma forma “oprimidos”. Como explicamos essa discrepância?

ZINN: Porque é do interesse de quem está no poder de dividir o resto da população para governá-los. Colocar os pobres contra a classe média, os brancos contra os negros, nativos contra imigrantes, cristãos contra outras religiões. Serve aos interesses do establishment manter as pessoas ignorantes de suas próprias histórias.

ALI: Muitos dizem que as corporações possuem a mídia americana. Qual é a expressão apropriada para o discurso democrático e disseminação de informação se de fato há um monopólio enviesado sobre a mídia?

ZINN: Como há o controle da mídia pelo poder corporativo, descobrir a verdade depende da mídia alternativa, tais como estações de rádio pequenas, redes como a Pacifica Radio, programas como Amy Goodman’s Democracy Now. Também, jornais alternativos, que existem por todo o país. Também, programas de TV a cabo, que não dependam de propagandas comerciais. E também a internet, que pode alcançar milhões de pessoas desviando da mídia convencional.

ALI: Algo irá mudar com relação à política estrangeira do EUA no Oriente Médio, especificamente na Palestina e em Israel caso os democratas ganhem em 2008?

ZINN: Os candidatos democratas, Clinton e Obama, não mostraram nenhum sinal de mudança fundamental da política de apoio a Israel. Não mostraram empatia com o sofrimento dos palestinos. Obama ocasionalmente se referiu à situação dos palestinos, mas à medida que a campanha tem prosseguido, ele tem enfatizado seu apoio a Israel. Então, uma mudança de política irá exigir mais pressão de outros países e mais educação do povo americano, que sabem agora muito pouco sobre o que está acontecendo com o povo palestino. Os americanos são naturalmente simpáticos àqueles que vêem como sendo oprimidos, mas têm pouca informação por parte de seus líderes políticos ou da mídia, que poderiam lhe dar uma imagem realista do sofrimento dos palestinos sob a Ocupação.

ALI: Como “a esquerda” pode reconciliar sua suposta indiferença à religião com o crescente setor “religioso” da sociedade se juntando a partidos “conservadores”? Pode haver paz entre os dois ou é um cisma permanente? Já notei fanatismo dos dois lados, entre os “seculares” e “religiosos”.

ZINN: A esquerda precisa fazer uma distinção mais clara entre a intolerância do fundamentalismo e a tradição progressista na religião. Na América Latina, por exemplo, há a “teologia da libertação”. Nos EUA, há os padres e as freiras que apoiaram os negros no Sul e que protestaram contra a Guerra do Vietnã. Então não é sobre ser a favor ou contra a religião, mas decidir se a religião pode ter um papel de justiça e paz ao invés de violência e intolerância.

ALI: Muitos não sabem que você foi um bombardeiro durante a Segunda Grande Guerra. Essa experiência lhe trouxe algum tipo de epifania, catalisando mudanças fundamentais na sua ideologia?

ZINN: Eu não sabia muita história quando me tornei um bombardeiro na Força Aérea Americana na Segunda Grande Guerra. Só após a guerra vimos que, como os nazistas, havíamos cometido atrocidades. Hiroshima, Nagasaki, Dresden, minhas próprias missões de bombardeio. E quando estudei história depois da Guerra, aprendi de minhas próprias leituras, não das minhas aulas na universidade, sobre a história de expansão e militarismo dos EUA.

ALI: Você é um homem em seus anos dourados, e você olha para trás para suas muitas realizações. Você fez coisas impressionantes. Algum arrependimento? E também, se você pudesse escolher algo que fosse seu legado – o que seria?

ZINN: Não tenho arrependimentos sobre minhas atividades políticas, só que às vezes me empolguei demais e não encontrei o balanço apropriado entre as obrigações para com minha família e minha necessidade de estar envolvido com movimentos sociais. Quanto a alguma trabalho meu que corporifique meu “legado”, provavelmente não é um livro, mas a combinação de ser um escritor e um ativista, ser um intelectual público, usar minha instrução para a mudança social.

ALI: Muitos olham para horizontes futuros com olhos sem esperança, cínicos, prevendo cenário desastrosos resultando de nosso descuido e excesso. Recessão. Guerra. Déficit. Extremismo. Anti-americanismo global. Políticas partidárias insinceras. Iremos implodir? Podemos avançar? Você tem esperança para o futuro da América?

ZINN: A situação presente para os EUA parece ruim, mas sou esperançoso, à medida que vejo o povo norte-americano acordar e ser majoritariamente contra esta guerra e o governo Bush, à medida que reflito sobre os movimentos na história e como eles se ergueram surpreendentemente quando pareciam derrotados. Acredito que o povo americano tem a capacidade de criar um novo movimento, que poderá mudar a direção de nossa nação de um poder militar para uma nação pacífica, usando nossa riqueza enorme para necessidades humanas, aqui e no exterior.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Howard Zinn - vídeo de “Marx in Soho” traduzido

Fonte clique aqui.

Além de historiador, Howard Zinn é dramaturgo, e já escreveu uma peça sobre Emma Goldman e outra sobre Marx, chamada Marx in Soho. Dessa última é extraído o seguinte trecho em vídeo, cuja tradução vai abaixo.




MARX: “Mas ela [Jenny, esposa de Marx] não era paciente com o que ela considerava as “pretensões da alta erudição”. “Desça à terra, Herr Doktor”, ela dizia. Ela queria que eu explicasse a teoria da mais-valia de modo que todos os trabalhadores pudessem entendê-la. Mas eu lhes diria que ninguém pode entender sem primeiro entender a teoria do valor-trabalho. E a força de trabalho é uma mercadoria especial cujo valor é determinado pelas causas e meios da sobrevivência e no entanto dá valor a todas as outras mercadorias, um valor que sempre excede o valor do valor da força de trabalho. Jenny disse “não”. [risos] “Assim não vai dar.” Ela me disse: “Tudo o que você tem que dizer é isto: ‘Seu empregador lhe paga o mínimo em salários - só o bastante para vocês sobreviverem e trabalharem. Mas do seu trabalho ele tira muito mais do que o que ele lhe paga, então ele fica mais e mais e mais rico, mas você fica pobre.’”

terça-feira, 10 de março de 2009

Howard Zinn – Algumas linhagens e influências (Marx e Nietzsche)

Howard Zinn – cuja autobiografia é o primeiro lançamento da L-Dopa Publicações – é um historiador e ativista conhecido por sua historiografia radical. Em linhas gerais, dentro dessa abordagem incentiva-se a denúncia da hipocrisia governamental, a necessidade de se intensificar a consciência das injustiças sofridas pela maioria da população, e o esforço para tirar as máscaras ideológicas que encobrem a violência e a opressão. Além disso, Zinn também tem como marca pessoal, bastante característica, a impressionante capacidade, sempre presente, de resgatar momentos de esperança no passado. Seu propósito, afinal, é avigorar os movimentos sociais no presente, dos quais sempre participou.

Parte dessa história radical pode ser traçada à linhagem marxista. “Para Zinn,” escreve Joe Auciello, “Marx desenvolveu uma crítica abrangente do capitalismo e da alienação que ainda é relevante e necessária para as lutas políticas e econômicas de hoje.” Basicamente, o marxismo propôs uma nova maneira de abordar a história, que seria compreendida a partir de sua base econômica. Isso permitiria entender o passado como muito mais do que um emaranhado de guerras, conflitos religiosos e confusões políticas de todo tipo. Ao contrário, a história passaria a entender as lutas materiais que, em última instância, a moldariam – um tipo de história crítica da ideologia e da alienação humana, temas caros a Howard Zinn. A história tradicional havia omitido (e continua omitindo) esse nexo entre o mundo material e o das representações. Para Marx e Engels:

“Isto faz com que a história deva sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. Consequentemente, tal concepção apenas vê na história as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada, especialmente, a compartilhar, em cada época histórica, a ilusão dessa época.”[i]

É a “ilusão dessa época”, essa ideologia, que Zinn se propõe a confrontar a partir de uma alavanca presente. Esse ponto de apoio no presente é justamente – para usar outra terminologia marxista – a alienação do ser humano. Zinn ressalta a importância desse conceito, referindo-se explicitamente aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. “O estranhamento do homem descrito lá é pertinente não apenas para o proletariado clássico de seu tempo como para todas as classes na sociedade industrial moderna - e certamente para a geração de jovens nos Estados Unidos. Ele fala de homens produzindo coisas alienadas de si mesmos, que se tornam monstros independentes (olhe ao nosso redor, nossos carros, nossas televisões, nossos arranha-céus, mesmo nossas universidades).”[ii]

Ao mesmo tempo que existem essas afinidades do pensamento de Zinn com o de Marx, é importante salientar que dentro da linhagem desse último, há diversas posições que acreditam que o ponto de vista proletário de interpretação da história é a interpretação objetiva que existe (embora isso não seja totalmente um consenso). Zinn, por outro lado, parece tornar mais relativa essa interpretação através da responsabilidade pessoal e ética do historiador entendido como um indivíduo, e não porta-voz de uma classe.

Por fim, uma nota teatral. Howard Zinn é também dramaturgo, e é autor de uma peça sobre Marx chamada Marx in Soho (1999).

Howard Zinn e Nietzsche

À primeira vista é paradoxal imaginar uma ligação entre Zinn e Nietzsche, já que este último é tido como um pensador fundamentalmente de direita. Mas recentemente o filósofo alemão tem recebido leituras mais à esquerda, inclusive por parte de feministas. E, é claro, não é necessário concordar com tudo que um autor professa para fazer uso de algumas de suas idéias. Dito isso, pode-se constatar proximidades na maneira de entender a história radicalmente.

Nietzsche enfatiza a leitura do passado a partir do presente. A história para ele é algo que não pode acrescentar somente ao conhecimento, mas precisa se dirigir sobretudo à virtude (embora esse termo para o autor de Assim falou Zaratustra tenha uma conotação diferente). Ele escreve: “Todo grande homem exerce uma força retroativa: toda a história é novamente posta na balança por causa dele, e milhares de segredos do passado abandonam seus esconderijos – rumo ao sol dele. Não há como ver o que ainda se tornará história. Talvez o passado esteja ainda essencialmente por descobrir!”[iii]

Essa procura do vital na história é um eixo na historiografia de Zinn. É claro que isso pode dar margem à crítica da “falta de precisão” e de “desatenção aos pormenores”. Para Howard Zinn: “Nietzsche diria (como em seu Uso e Abuso da História) que nada importa mais do que a eficácia que dá vida, mas ele não associava isso com tolerância da inépcia. Mais importante, o que causou mais “mal” na Europa, desatenção ao “apuro” (quem era mais meticuloso que os historiadores europeus?) ou traição de suas sociedades por desatenção às tiranias que cresciam ao seu redor enquanto eles tratavam de seus ‘assuntos particulares’?”[iv] A obra escrita e vivida de Zinn é testemunha da resposta que ele daria.

Leia mais:

Vídeo de trecho de Marx in Soho – [em inglês]

Notas de fim


[i] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Ed. Hucitec, 1999, p. 57.

[ii] ZINN, Howard. Howard Zinn on History. Seven Stories Press, 2001, p. 87.

[iii] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Companhia das Letras, 2007, p. 81.

[iv] ZINN, Howard. The Politics of History: With a New Introduction. University of Illinois Press, 1990, p. 308.


Autoria : Nils.

fonte clique aqui.

domingo, 1 de março de 2009

Entrevista de 2008

Entrevista realizada em Outubro de 2008

Boulder Weekly: Você sempre comenta que procura omissões na história. O que você acha que está sendo deixado de fora da nossa atual situação histórica?

Howard Zinn: O que está sendo deixado de lado do discurso ou da discussão de que as pessoas estão falando, do que a imprensa está falando hoje em dia – o que está sendo deixado de lado é a história dos abonos do governo, a história do apoio do governo para as corporações e os ricos. Então se você não tem a história, você provavelmente vai pensar ‘Ah isso é algo novo. Isso é um desvio da maneira como os Estados Unidos sempre foram.’ Não é um desvio. É uma continuação de algo que começou há muito tempo e tem prosseguido por toda a história americana.

E o que tem acontecido por toda a história americana pode ser trilhado até a Constituição e a Revolução Americana. E o fato de que a Constituição estabeleceu um governo central forte, e um de seus importantes propósitos era bonificar os fiadores da Revolução porque as letras do Tesouro que eles tinham – como resultado de emprestar dinheiro para o Exército Continental, para o Congresso Continental durante a Revolução – essas letras não tinham realmente valor algum. Mas o novo governo federal foi capaz de resgatar essas letras completamente, e dar aos fiadores o valor integral. E a maneira como eles juntaram dinheiro para fazer isso foi taxando o resto da população, taxando os americanos comuns, que é exatamente o que está acontecendo hoje – abonando essas instituições financeiras fracassadas e planejando pagar por isso com um peso enorme nas costas do americano médio.

Se você começar com a Revolução Americana e traçar um arco de lá até o dia atual, você verá vários pontos onde aconteceu exatamente a mesma coisa, onde o governo desempenhou seu papel de usar seu poder e recursos para apoiar as classes ricas. No caso da Constituição, eles usaram o poder do governo central para apoiar os escravocratas ao assegurarem que seus escravos fugitivos seriam levados de volta conseguindo sustentar um exército forte o suficiente para suprimir rebeliões de fazendeiros, o que de fato tiveram que fazer desde o começo de 1790, quando houve a chamada Whiskey Rebellion na Pensilvânia. Foi aí que os fazendeiros se rebelaram contra as taxas que tinham que pagar e a Constituição criou um governo forte o suficiente para apoiar os expansionistas – as pessoas que vão ocupar o território indígena e que enfrentariam resistência indígena, e que precisariam das forças armadas do governo nacional para lidar com esses indígenas.

E aí você segue o arco até o século XIX, até as enormes benesses de terra gratuita para as ferrovias em 1850 e 1860, até as altas tarifas que o governo colocou em bens importados para ajudar os fabricantes, o que por sua vez elevou os preços das mercadorias para os consumidores americanos. Entre no século XX e veja novamente o governo ajudando as corporações. A Suprema Corte diversas vezes declarou inconstitucional qualquer auxílio aos pobres, declarou inconstitucionais salários mínimos e horas máximas de trabalho. Não foi senão até 1930 que vimos nesse país uma revolta, um país em revolta com greves gerais por todo o país – só então o governo passou legislação em favor dos pobres e das classes médias. Isso foi uma aberração, porque depois da Segunda Grande Guerra, o governo voltou – eu não devia nem dizer depois da Guerra. Durante a Guerra, o governo forneceu enormes contratos de guerra para corporações que lucraram com o conflito. Depois da guerra, quando a indústria aeronáutica estava aos pedaços, o governo subsidiou essa indústria. E sabemos das empresas de petróleo e como o governo, pela permissão de esgotamento do petróleo e por impostos especiais favorece as corporações de petróleo, tem mantido-as funcionando.

Então numa longa resposta à sua pergunta – você não vai conseguir respostas curtas de mim, não! – numa longa resposta à sua pergunta, o que está sendo esquecido no presente discurso sobre o colapso de Wall Street é uma história que mostra que isso é parte de um longo padrão de aliança entre o governo e grandes corporações em detrimento do americano médio.

Boulder: Considerando essa continuação, qual você acha que é o melhor meio para mudanças?

Zinn: Bem, precisamos é claro de uma mudança – uma mudança muito drástica em política governamental. Essa mudança, acredito, deve consistir de, ao invés de subsidiar essas enormes corporações, deixá-las ir a pique. Ao invés de dar um trilhão de dólares para corporações na esperança de que, ao mantê-las boiando, o dinheiro irá eventualmente ir para os que pagam hipoteca e pessoas comuns… ao invés disso, pegue o dinheiro que iria subsidiar essas corporações e use o dinheiro para ajudar as vítimas do sistema financeiro. Use esse dinheiro para pagar as hipotecas das pessoas que estão com dificuldades. Use esse dinheiro para garantir empregos para as pessoas que irão perder seu emprego quando as corporações diminuírem. Use esse dinheiro para criar saúde universal para todo mundo.

Em outras palavras, vão ao coração do assunto. O coração do assunto quando você tem um colapso econômico – e foi isso que aconteceu em 1929 – é que o dinheiro do país tem ido para os super-ricos, e o poder de compra da pessoa comum tem declinado. Essa distância aumenta, e à medida que aumenta, torna-se uma bolha que se estica mais e mais fina e que estoura. A raíz disso é que as pessoas são privadas da riqueza da nação. Portanto, o que a riqueza deve fazer para quaisquer que sejam as necessidades das pessoas está na saúde, educação, empregos…

Desvie das corporações e nacionalize as indústrias que sejam úteis. A maioria dessas corporações não são úteis. São instituições financeiras que compram e vendem papéis e não produzem nada de importante. Mas onde as corporações produzem algo importante, bem, elas devem ter impostos pesados.

Na administração Bush, as 400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos ganharam algo como 600 bilhões de dólares durante os anos Bush só via redução de impostos. Isso é absurdo. Precisamos mudar a estrutura de impostos. Agora, Obama tem dito que ele irá aumentar os impostos para os ricos e retirar os impostos para a maioria da população. Isso é um passo na direção certa, embora ele tenha que fazer mais do que isso, ser mais ousado do que isso em suas propostas de taxação, porque nós precisamos de uma redistribuição realmente fundamental da riqueza neste país, e uma garantia dos tipos de coisas de que as pessoas necessitam para sobreviver.

Boulder: Em acréscimo a isso, quais são os fatores-chave para os eleitores nesta eleição?

Zinn: Creio que os eleitores devem votar em Obama, não porque ele vai até onde é preciso ir, mas porque com McCain – ele está preso na filosofia Bush. Com Obama há um tipo de brilho de possibilidade. Nosso grande trabalho não é apenas votar para o Obama para que haja uma possibilidade, mas transformar essa possibilidade em realidade ao criar um movimento social neste país no qual Obama terá que prestar atenção – porque, em última instância, isso é o que traz mudanças. O presidente ou o Congresso nunca começaram mudanças importantes. Não, o que é necessário é um movimento social como os movimentos trabalhistas de 1930, o movimento negro, o movimento contra a guerra, os movimentos das mulheres em 1960, que irão balançar Obama e seus gabinetes conservadores e levá-los a direções mais ousadas, assim como os agitadores dos 30 levaram Roosevelt a direções mais ousadas.

Boulder: Você foi testemunha de tanto movimentos históricos e sociais americanos. De que maneira o atual clima se compara com o de movimentos sociais do passado?

Zinn: Creio que é diferente no sentido de que o controle da mídia é maior e mais ameaçador hoje do que era em 1960, mas a mídia sempre esteve do lado do establishment. Há coisas hoje que tornam mais difíceis do que em outros movimentos sociais, mas por outro lado, os elementos estão aí para um novo movimento social. Os movimentos estão aí, quero dizer crescendo, crescendo a insatisfação no país – ainda não organizados, mas aí. É um reservatório de raiva, de indignação contra a guerra, contra a administração Bush, contra o sistema econômico. Então há esse reservatório de energia e raiva que ainda não se organizou nem se tornou uma força que pode trazer mudanças. Mas o potencial está aí.

Nesse sentido, nós nos parecemos com outros tempos antes de que os movimentos fossem efetivos – quando eles estavam apenas crescendo, quando estavam apenas se desenvolvendo. O movimento anti-escravidão teve que se desenvolver por 30 anos. O movimento contra a guerra no Vietnã teve que se desenvolver por quatro ou cinco anos. O movimento pelos direitos civis teve que se desenvolver por décadas e décadas. Então, estamos num estágio de desenvolvimento. Você não pode simplesmente olhar para onde estamos agora e dizer ‘Bem, nós não estamos fazendo nada, somos incapazes, somos um fracasso.’ Não, nós estamos numa situação mutável dinamicamente todo dia, e a consciência das pessoas é capaz de crescer dia a dia à medida que olham ao redor e percebem como o presente sistema é desastroso – o sistema de guerras e o sistema de estados nações. Eu acho que há possibilidade e esperança.

Há tanto que se passa neste país que não é relatado… É importante saber que há tanto que está sendo omitido. É tão importante para as pessoas, se não estão prestes a desesperar, que, ao invés de assistir televisão, vão à biblioteca e leiam a história dos movimentos sociais passados e como as pessoas se desesperaram nesses movimentos sociais passados, mas como elas persistiram e persistiram e algo aconteceu.

Boulder: Qual o papel da mídia em manipular o retratar factualmente a percepção das pessoas da verdade?

Zinn: O problema da mídia é que a cobertura é tão superficial. Eles dependem dos eruditos e dos experts e do povo no Congresso, e você não vê a mídia falando sobre as coisas fundamentais. Você não vê a mídia questionando os princípios básicos subjacentes ao que acabou de acontecer. Essa falsa idéia do mercado livre, da economia de mercado, da livre empresa, da empresa privada, todos esses slogans falsos que têm sido colocados nos ouvidos das pessoas.

Ah, a idéia de que ‘Não devemos ter um governo grande!’ que lembro que Clinton falou também. Porque os democratas têm sido cúmplices do republicanos em usar o governo para o benefício dos ricos. Bill Clinton disse ‘Ah, o governo não deve ajudar as pessoas!’ [risadas] e então ele assinou a lei que acabava com a medida do New Deal e ajuda federal para pessoas com crianças dependentes. Então a mídia não tem feito seu trabalho em desafiar as coisas fundamentais e nos dar a história de que precisamos, a perspectiva que precisamos que nos diria que o que é necessário agora não é algum tipo de reforma leve, mas uma reestruturação fundamental da nossa sociedade.

Esta tradução por Nils

Fonte aqui.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

A pergunta em Kalamazoo

A introdução do livro "Você não pode ser neutro num trem em movimento" está disponivél no blogue da L-dopa. O nome do texto é A pergunta em Kalamazoo.

Leia aqui.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

História Radical e Historicismo - por Nils

“Precisamos da história,
mas não como precisam dela
os ociosos que passeiam
no jardim da ciência
.”
- Nietzsche



O primeiro livro editado pela L-Dopa – e outros como o livro de contos de O’Henry estão a caminho – foi a autobiografia do historiador norte-americano Howard Zinn, Você não pode ser neutro num trem em movimento (2005). Livros de memórias não costumam ser lugares particularmente instrutivos sobre a época em que o autor viveu – apenas como se um “pano de fundo” diferente do nosso fosse visível, vez por outra, quando o protagonista se agacha. Zinn – da sua infância pobre à recente contestação da “Guerra contra o terrorismo”, passando por sua experiência como bombardeiro na Segunda Grande Guerra, seu envolvimento com a luta pelos direitos civis no Sul e a campanha contra a intervenção no Vietnã – realiza uma espécie de radiografia. Em seu influente livro A People’s History of the United States, essa visão de raio-X articula o nível macro com o micro. O mesmo se dá em Você não pode ser neutro num trem em movimento, mas dessa vez partindo do individual para o contexto, uma biografia de alianças, de encontros e de uniões, uma história pessoal de histórias inter-pessoais.

A história radical que Zinn advoga diz que se escape da cronologia de sucessões aplainadas com que a explicação da história oficial nos habituou. Ela reconhece e defende a tendência subjetiva na interpretação do passado. David Edwards escreve:


Como Howard Zinn argumentou em seu recente livro Você não pode ser neutro num trem em movimento, não é o viés que é o problema, mas o tipo de viés (e o fato que pessoas não admitem seu viés mas fingem objetividade). Qualquer análise de eventos envolve um viés simplesmente porque toda análise requere incluir ou omitir certos eventos com base no que julgamos importante. Junto com Zinn, sou feliz em me declarar completamente enviesado - acredito que seres humanos florescem na medida em que são livres para perseguir a vida, liberdade e felicidade da maneira que preferirem.”[i]


É possível portanto traçar uma linha demarcatória entre a história radical e o historicismo. Infelizmente é o encadeamento historicista que estabelece nossa realidade presente, e aqui o real se opõe ao possível. Howard Zinn, negando a causalidade historicista, revela a força que há no agora, indo de encontro à maioria dos historiadores e suas cronologias tradicionais. “É paradoxal que o historiador”, considera Zinn, “que é presumidamente abençoado com a perspectiva histórica, julgue o radical de dentro da estreita base moral do período de atividade do radical, enquanto o radical estima a sociedade do ponto vantajoso de alguma era futura, melhor.”[ii] A história é sempre inconclusa, uma construção permanente e singular.


Uma característica comum a todas as lutas com as quais Zinn se envolveu é o que se pode denominar efeito geleira. Como uma geleira, que se movimenta lentamente até chegar a um ponto de transformação, os movimentos sociais, na visão de Zinn, estão sempre ganhando momento, até que há a reação em cadeia. De tal forma, ao extrair inspiração do passado, Zinn salienta instantâneos de lutas aparentemente circunscritas a um campo pequeno. Mas julgar tais esforços como pequenos é sempre, como aponta o historiador, um erro de perspectiva.

Nós devemos ser encorajados por exemplos históricos de mudança social, por como mudanças surpreendentes acontecem subitamente, quando você menos espera, não devido a um milagre do topo, mas porque as pessoas trabalharam pacientemente por um longo tempo. Quando as pessoas ficam desencorajadas porque fazem algo e nada acontece, elas deveriam realmente compreender que a única maneira de as coisas acontecerem é se as pessoas passarem além da noção de que devem ver sucesso imediato. Se elas ultrapassarem essa noção e persistirem, então elas verão as coisas acontecendo antes mesmo de perceberem.”[iii]


A linearidade do decurso, a homogeneidade de um tempo oco – o historiador para Howard Zinn explode tudo isso e trabalha com esses pedaços (como a luta contra a segregação nas bibliotecas descrita na autobiografia, por exemplo) que parecem pequenos e sem importância, mas que ele combinará e de que extrairá inspiração para as lutas presentes. Zinn, ao criticar a ingenuidade positivista no estudo do passado, retorna a história ao seu papel político.

Notas de fim

[i] EDWARDS, David. Burning All Illusions: A Guide to Personal and Political Freedom. South End Press, 1996, p. 190.

[ii] ZINN, Howard. The Zinn Reader: Writings on Disobedience and Democracy. Seven Stories Press, 1997, p. 123.

[iii] ZINN apud BARSAMIAN, David. Louder Than Bombs: Interviews from the Progressive Magazine. South End Press, 2004, p. 207.

Fonte clique aqui.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O que diz sobre Patriotismo.



Locutora: O que significa "patriotismo" para si?

Howard Zinn: Ainda bem mencionou "para mim", porque o patriotismo, para mim, significa algo diferente daquilo que significa para muitas pessoas, julgo eu, que têm distorcido a ideia de patriotismo. Patriotismo, para mim, significa fazer aquilo que julgamos que o nosso pais deve fazer.
Patriotismo significa apoiar o governo quando achamos que este está certo, opor quando achamos que está errado.
Patriotismo para mim significa aquilo que a Declaração de Independência sugere. Isto é, o governo é uma entidade artificial, o governo é erguido (e isto é o que a Declaração de Independência nos diz), o governo é erguido pelas pessoas, de forma a desempenhar determinadas responsabilidades. Igualdade, vida, liberdade para se ser feliz, e quando, de acordo com a Declaração de Independência, o governo viola tais responsabilidades, então, e estas são as palavras da Declaração de Independência, as pessoas têm o direito de alterar ou abolir o governo.
O governo não é para ser considerado sagrado ou obedecido, quando este está errado. E portanto, para mim, patriotismo significa, no seu verdadeiro sentido, ter em consideração as pessoas desse país, os seus princípios e aquilo que o país representa, e isso exige oposição ao governo quando este viola esses princípios.

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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O que estamos fazendo no Iraque?

O que estamos fazendo no Iraque?

Após 27 meses de ocupação americana e da escalada de violência e mortes que acarreta por todos os lados, a guerra inventada por Bush segue vitimando também os norte-americanos, sua juventude, suas liberdades e seu modo de viver

Howard Zinn

O Iraque não é um país libertado, e sim um país ocupado. Isto é uma evidência. O termo "país ocupado" tornou-se familiar a nós durante a Segunda Guerra Mundial. Falávamos então de "França ocupada pelos alemães, de Europa sob ocupação alemã". Depois da guerra, falamos da Hungria, da Checoslováquia e do Leste Europeu ocupados pelos soviéticos. Os Nazistas e os Soviéticos ocuparam muitos países. Nós os libertamos dessas ocupações.

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso. A tirania espanhola foi vencida, mas os Estados Unidos transformaram a ilha em base militar, como o que estamos fazendo no Iraque. As grandes companhias americanas implantaram-se em Cuba, como a Bechtel, a Halliburton e as empresas petrolíferas se instalam no Iraque. Os Estados Unidos redigiram e impuseram, com cúmplices locais, a Constituição que deveria reger Cuba, exatamente como nosso governo elaborou, com a ajuda de grupos políticos locais, uma Constituição para o Iraque. Não, isso não tem nada de libertação. É ocupação mesmo.

E é uma ocupação suja. Já em 7 de agosto de 2003, o New York Times relatava que o general americano Ricardo Sanchez, em Bagdá, "preocupava-se" com a reação iraquiana diante da ocupação. Os dirigentes iraquianos pró-americanos apresentaram-lhe uma mensagem que ele nos retransmitiu: "Quando vocês prendem um pai na presença de sua família, cobrem-lhe a cabeça com um saco e fazea-no ajoelhar-se, vocês atingem pesadamente, aos olhos de sua família, sua dignidade e respeito." (nota particularmente perspicaz).

Humilhação e violência

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso

A rede CBS News relatava já em 19 de julho de 2003, bem antes da descoberta dos casos confirmados de torturas na prisão de Abu Graib em Bagdá: "A Anistia Internacional está examinando um certo número de casos de presumidas torturas cometidas no Iraque pelas autoridades americanas. Dos quais um é o caso Khaisan Al-Aballi. A casa de Al-Aballi foi arrasada por soldados americanos que apareceram atirando por todos os lados; prenderem Al-Aballi e também seu velho pai, de 80 anos. Eles acertaram e feriram seu irmão... os três homens foram levados... Al-Aballi diz ter declarado a seus sequestradores: "Nao sei o que vocês querem. Não tenho nada." "Eu pedi a eles que me matassem", conta Al-Aballi. "Oito dias depois, eles o deixaram ir, acompanhado de seu pai... Os oficiais americanos não responderam aos inúmeros pedidos que lhes foram feitos para discutir esse assunto..."

Sabe-se que três quartos da cidade de Falluja (360 000 habitantes) foram destruídos e que centenas de seus habitantes foram mortos durante a ofensiva americana de novembro de 2004 deflagrada sob o pretexto de limpar a cidade dos bandos terroristas que teriam agido dentro de uma "conspiração baathista”. Mas esquecemos que em 16 de junho de 2003, nem um mês e meio depois da "vitória" no Iraque e da "missão cumprida" proclamada pelo presidente Bush, dois repórteres da rede Knight-Rider tinham escrito sobre a zona de Falluja: "Ao longo dos cinco últimos dias, a maior parte dos habitantes desta região afirmaram que não havia conspiração alguma, baathista ou sunita, contra o exército americano mas homens prontos para lutar porque seus parentes tinham sido feridos ou mortos ou eles mesmos tinham sofrido humilhações durante revistas ou barreiras de rua... Uma mulher declarou, depois da prisão de seu marido por causa de caixotes de madeira vazios que eles tinham comprado para (fazer fogo) para se aquecer, que os Estados Unidos eram culpados de terrorismo." Esses mesmos repórteres afirmavam: "Residentes de Agilia – uma aldeia ao norte de Bagdá – alegaram que dois camponeses de lá e mais cinco de uma aldeia vizinha foram mortos por tiros americanos quando estavam tranquilamente regando suas plantações de girassóis, tomates e pepinos".

Soldados nervosos e amedrontados

O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo"

Os soldados enviados a este país – a quem haviam dito que as pessoas os acolheriam como libertadores – e que se vêem cercados por uma população hostil, tornaram-se medrosos, estão deprimidos e puxam o gatilho facilmente, como se viu na libertação, em Bagdá, da jornalista italiana Giuliana Sgrena, em março de 2005, quando o oficial italiano dos serviços de informação Nicola Calipari foi abatido na barreira por soldados americanos nervosos e amedrontados.

Lemos os relatos de GIs furiosos por serem mantidos no Iraque. Um repórter da rede ABC News no Iraque declarou recentemente que um sargento o tinha chamado em particular para dizer-lhe: "Eu tenho minha própria lista dos mais procurados" (Most wanted list). Ele aludia ao famoso baralho publicado pelo governo americano, representando Saddam Hussein, seus filhos e outros membros do regime baathista iraquiano: "Os ases do meu baralho – dizia ele – são George Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz".

Tais sentimentos, assim como os de muitos desertores que se recusam a voltar ao inferno do Iraque depois de uma licença em casa, são agora conhecidos do público americano. Em maio de 2003, uma pesquisa de opinião anunciava que só 13% dos americanos pensava que a guerra estava indo por um caminho ruim. Em dois anos, as coisas mudaram radicalmente. Segundo uma pesquisa publicada sexta-feira, 17 de junho de 2005 pelo New York Times e a rede CBS News, 51% dos americanos acham agora que os Estados Unidos não deviam ter invadido o Iraque e não deviam ter começado esta guerra. Agora 59¨% desaprovam a gestão do presídente Bush da situação no Iraque. E me parece interessante notar que as pesquisas realizadas entre a população afro-americana revelaram constantemente uma oposição de 60% à guerra no Iraque.

A ocupação dos EUA

Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque

Mas existe uma ocupação de pior augúrio ainda que a do Iraque, é a ocupação dos Estados Unidos. Eu me levantei hoje de manhã, li o jornal e tive a sensação de que estávamos mesmo em um país ocupado, que uma potência estrangeira nos tinha invadido. Esses trabalhadores mexicanos que tentam atravessar a fronteira – arriscando a vida para escapar dos funcionários da imigração (na esperança de alcançar uma terra que, cúmulo da ironia, pertencia a eles antes dos Estados Unidos dela se apoderarem em 1848) – esses trabalhadores não são estrangeiros aos meus olhos. Esses 20 milhões de pessoas que vivem nos Estados Unidos, que não têm o estatuto de cidadãos e que em consequência e em virtude do Patriot Act (a lei Patriota), são suscetíveis de serem jogados fora de suas casas e detidos indefinidamente pelo FBI, sem direito constitucional algum – essas pessoas, para mim, não são estrangeiras.. Ao contrário, o grupúsculo de indivíduos que tomou o poder em Washington (George W. Bush, Richard Cheney, Donald Rumsfeld e o resto da camarilha), esses sim, são estrangeiros.

Eu acordei dizendo a mim mesmo que este país estava nas garras de um presidente que foi eleito uma primeira vez, em novembro de 2000, em circunstâncias que se conhece, graças a todo tipo de trapaça na Flórida e por uma decisão do Supremo Tribunal. Um presidente que continua, depois de sua segunda eleição em novembro de 2004, cercado de "falcões" de terno que não se preocupam com a vida humana nem aqui nem em lugar nenhum, cuja menor preocupação é a liberdade, aqui ou em outro lugar e que se lixam para o que será da Terra, da água, do ar e do mundo que deixaremos a nossos filhos ou netos.

Muitos americanos se põem a pensar, como os soldados do Iraque, que alguma coisa está errada, que este país não se parece com a imagem que fazemos dele. Cada dia traz sua dose de mentiras à praça pública. O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo". Passando por cima do fato de que a própria guerra é terrorismo; que chegar na casa das pessoas, levar os membros de uma família e submetê-los à tortura é terrorismo, que invadir e bombardear outros países não nos traz mais segurança, muito pelo contrário.

O sofisma de Rumsfeld

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos

Tem-se uma pequena idéia do que o governo entende por "guerra contra o terrorrismo" quando lembramos da célebre declaração feita pelo secretário americano da defesa, Donald Rumsfeld (um dos "mais procurados " da lista do sargento), quando ele se dirigiu aos ministros da OTAN, em Bruxelas, na véspera da invasão do Iraque. Ele explicou então as ameaças que pesavam sobre o Ocidente (imaginem – ainda falamos do "Ocidente" como uma entidade sagrada, enquanto que os Estados Unidos, que fracassaram em arrebanhar para seu projeto de invasão do Iraque vários países da Europa (entre os quais a França e a Alemanha), tentava cortejar a qualquer preço os países do Leste persuadindo-os de que nosso único objetivo era libertar os iraquianos como os havíamos libertado, a eles, do domínio soviético). Rumsfeld, então, explicando quais eram essas ameaças e porque eram "invisíveis e não identificáveis", pronunciou seu sofisma imortal: "Há coisas que conhecemos. E há outras que sabemos não conhecer. Quer dizer que há coisas que sabemos que, no momento, não conhecemos. Mas há também coisas desconhecidas que não conhecemos. Há coisas que não sabemos que não conhecemos. Em resumo, a ausência de provas não é a prova de uma ausência... Não ter a prova de que alguma coisa existe não quer dizer que temos a prova de que ela não existe."

Felizmente Rumsfeld está aí para nos esclarecer. Isto explica porque a administração Bush, incapaz de capturar os autores do atentado de 11 de setembro continuou seu ataque, invadiu e bombardeou o Afeganistão já em dezembro de 2001, matando milhares de civis e provocando a fuga de centenas de milhares de outros, e não sabe até hoje onde se esconderam os criminosos. Isto explica também porque o governo, sem saber de fato que tipo de armas Saddam Hussein escondia, decidiu bombardear e invadir o Iraque em maio de 2003 contra a ONU, matando milhares de civis e de soldados e aterrorizando a população. Isso explica porque o governo, sem saber quem é ou não é terrorrista, decidiu prender centenas de pessoas no cárcere de Guantânamo em condições tais que dezoito deles tentaram suicidar-se.

Tortura "edulcorada"

O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados

Em seu relatório de 2005 sobre as violações dos direitos humanos no mundo, tornado público em 25 de maio de 2005, a Anistia Internacional não hesitou em afirmar que "o centro de detenção de Guantanamo tornou-se o Gulag de nossa época". A secretária geral da organização, Irene Khan acrescentou: "Quando o país mais poderoso do planeta esmaga sob os pés a primazia da lei e dos direitos humanos, está autorizando os outros a infringir as regras sem escrúpulos, convencidos de ficarem impunes". Irene Khan denunciou também as tentativas dos Estados Unidos de banalizar a tortura. Os americanos, sublinhou ela, tentam tirar o caráter absoluto da proibição à tortura "redefinindo-a" e "edulcorando-a". Ora, lembrou ela, "a tortura ganha terreno desde que sua condenação oficial deixa de ser absoluta". Apesar da indignação suscitada pelas torturas cometidas na prisão de Abu Graib (Iraque), deplorou a Anistia, nem o governo nem o Congresso dos Estados Unidos pediram a abertura de uma investigação aprofundada e independente.

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos. Uma guerra contra nossas liberdades, uma guerra contra o nosso modo de viver. A riqueza do país é roubada do povo para ser distribuída com os super-ricos. Roubam também a vida dos nossos jovens.

Não há dúvida alguma de que essa guerra que já dura dois anos e três meses fará ainda muitas vítimas não somente no estrangeiro, mas no próprio território dos Estados Unidos. A administração diz a quem quiser ouvir que a gente se safará bem dessa guerra porque ao contrário do Vietnã, há poucas vítimas1. É verdade, "apenas" algumas centenas de mortos em combate. Mas quando a guerra terminar, então as vítimas das consequências dessa guerra – doenças, traumatismos – não cessarão de aumentar.

Vítimas da mentira de Estado

A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história

Depois da guerra no Vietnã, veteranos assinalaram malformações congênitas em suas famílias, causadas pelo agente laranja, um potente herbicida muito tóxico, pulverizado sobre as populações vietnamitas Durante a primeira guerra do Golfo em 1991, contaram-se apenas algumas centenas de perdas, mas a Associação dos Veteranos recentemente denunciou a morte de 8 000 deles ao longo destes dez últimos anos. Duzentos mil veteranos, dos seiscentos mil que participaram da primeira guerra do Golfo, queixam-se de mal-estares, de patologias devidas às armas e munições utilizadas durante essa guerra. Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque.

Qual é nosso dever? Denunciar tudo isso. Estamos convencidos de que os soldados enviados ao Iraque só suportam o terror e a violência porque mentiram para eles. E quando souberem a verdade – como aconteceu durante a guerra do Vietnã – eles se voltarão contra seu governo. O resto do mundo nos apóia. A administração dos Estados Unidos não pode ignorar indefinidamente os dez milhões de pessoas que protestaram no mundo inteiro em 15 de fevereiro de 2003 e cujo número aumenta a cada dia. O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados.

Devemos engajar-nos em todas as ações tendo por fim parar com esta guerra. Nunca será demais. A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história. Até constituir um poder que nenhum governo pode reprimir.

(Trad. : Betty Almeida)

1 - Em 20 de junho de 2005, o número de militares americanos mortos no Iraque chegava a 1 724 e o número total de feridos a 12 896 (fonte: http://www.antiwar.com/casualties/)


Fonte clique aqui.

Pelos breves momentos de solidariedade

Pelos breves momentos de solidariedade

As omissões da história oficial norte-americana oferecem uma imagem distorcida do passado e induzem ao erro em relação ao presente. O futuro se encontra mais em alguns episódios de resistência que foram enterrados do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias

Howard Zinn

Por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados

No final da década de 70, quando decidi me lançar a este projeto (o de escrever A People’s History of the United States), já fazia vinte anos que ensinava história no Spellman College, uma universidade para moças negras, em Atlanta. Antes, participara do movimento pelos direitos civis, no sul dos Estados Unidos. Seguiram-se dez anos de luta contra a guerra do Vietnã. Em matéria de “neutralidade”, é pouco o que essas experiências contribuem para com um historiador, seja ele professor, ou escritor.

Entretanto, meu senso crítico já se desenvolvera bem antes, pois fui educado numa família de imigrantes da classe operária, em Nova York; depois, por três anos, trabalhando num estaleiro naval e em seguida, durante a II Guerra Mundial, pela experiência a bordo de um avião bombardeiro da Força Aérea que decolava da Inglaterra para lançar bombas na Europa, inclusive na costa atlântica da França.

Terminada a guerra, fui beneficiado pela medida que permitiu o acesso à educação superior gratuita a milhões de ex-combatentes, entre os quais todos os filhos de trabalhadores que, sem essa sorte, não teriam podido pagar por seus estudos1. Fiz minha tese de doutorado na Universidade de Columbia, mas, graças à minha experiência de vida, sabia que o que aprendera na faculdade descartava alguns elementos cruciais da história dos Estados Unidos.

Sem ilusões sobre a objetividade

Quando comecei a dar aulas e a escrever, não alimentava quaisquer ilusões sobre o que era “a objetividade”: evitar manifestar um ponto de vista. Eu sabia, na verdade, que um historiador (ou um jornalista, ou qualquer pessoa que conte uma história) é obrigado a optar, em meio a um número infinito de fatos, entre os que devem ser apresentados e os que convém que sejam omitidos. E que, ao fazê-lo, de maneira consciente ou inconsciente, ele reflete seus interesses.

Alguns professores e políticos repetem, insistentemente, que os alunos devem “aprender os fatos”. Isso me recorda a figura pedante de Gradgrind, no livro Hard Times, de Dickens, repreendendo um jovem professor: “Ensine somente os fatos, os fatos, os fatos.” No entanto, por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, por um escritor ou por qualquer pessoa, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados.

Na história oficial, que domina a cultura norte-americana, existem, em minha opinião, questões de uma importância fundamental que não consigo encontrar. Essas omissões nos oferecem uma imagem distorcida do passado, mas – o que é mais grave – nos induzem ao erro em relação ao presente.

O “interesse comum”

Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje

Tomemos, por exemplo, a noção de classe social. A cultura dominante (presente na educação, na vida política, nos meios de comunicação) sugere que nossa sociedade seria desprovida de classes e que temos um único interesse, o interesse comum. No preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consta: “We, the people” (Nós, o povo). Trata-se de uma expressão enganosa. Em 1787, a Constituição foi redigida, na realidade, por 55 homens, todos brancos, todos senhores de escravos ou comerciantes dispostos a criar um tipo de autoridade capaz de defender os interesses de sua classe.

Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje. A linguagem normalmente utilizada leva a crer que todos (ricos, pobres e classe média) têm um interesse comum. Quando se fala da nação, por exemplo, utilizam-se termos universais. Quando declara, sorridente, que nossa economia “vai bem”, o presidente não está levando em consideração que 50 milhões de pessoas fazem o que podem para sobreviver, enquanto a classe média vai se virando e o 1% da população que detém 40% da riqueza da nação, esse sim, de fato, vai muito bem.

Ação maciça de mentiras

O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”. Minha própria experiência da guerra, assim como a história de todas as intervenções militares norte-americanas, desperta meu ceticismo sempre que ouço algum alto dirigente falar do “interesse nacional” ou da “segurança nacional” para justificar suas políticas. Foi com justificativas desse tipo que Harry Truman lançou, em 1950, o que chamou uma “ação de polícia” na Coréia e que fez vários milhões de vítimas; que Lyndon Johnson e Richard Nixon travaram, na Indochina, outra guerra igualmente sangrenta; que Ronald Reagan invadiu a ilha de Granada em 1983; que o pai do atual presidente bombardeou o Panamá, em 1989, e o Iraque, dois anos depois; e que William Clinton, por sua vez, também bombardeou o Iraque em 1993.

O “novo Bush” nos explicou que iria, em nome do interesse nacional, invadir e bombardear o Iraque. A idéia era tão absurda que só conseguiu ser aceita nos Estados Unidos devido à ação maciça de mentiras que, desfechadas pelo governo e pelos meios de comunicação, envolveram o país inteiro. Mentiras a respeito das “armas de destruição em massa”, mentiras a respeito de vínculos entre o Iraque e a Al-Qaida... O número crescente de norte-americanos que começam a perceber a amplitude dessa falsidade explica a atual queda de popularidade de George W. Bush. E esse recuo ocorre apesar da estreita colaboração entre o governo e os meios de comunicação, o que, em geral, caracteriza muito mais um Estado totalitário do que uma democracia.

Fatos silenciados

O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”

A perspectiva de uma guerra breve e indolor já se evaporou. Várias centenas de soldados norte-americanos morreram e mais de mil, talvez dois mil, foram feridos. Num canal insignificante da televisão a cabo (uma grande emissora não divulgaria esse tipo de coisa), a atriz Cher contou o que viu quando foi, recentemente, a um hospital de Washington: combatentes que haviam perdido os braços, ou as pernas, homens muito jovens mutilados para o resto da vida. E Cher resolveu questionar os motivos para esta guerra.

Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação. Tais como, por exemplo, os cerca de 30 mil civis iraquianos que foram mortos durante operações breves, mas sangrentas. Graças à Internet e às estações de rádio progressistas, estamos também tentando explicar as modalidades de ocupação do Iraque: a invasão violenta dos lares, a prisão de inocentes – de todas as idades –, ou o lançamento de bombas de 250 e de 500 quilos sobre bairros residenciais.

Fervor nacionalista

Quando decidi escrever A People’s History of the United States, optei por contar a história das guerras da nação, mas não a partir da perspectiva dos generais ou dos líderes políticos e, sim, da visão de jovens trabalhadores transformados em soldados e de seus pais e esposas que, um belo dia, recebiam telegramas com tarjas pretas nas bordas. Queria contar a história das guerras norte-americanas, mas do ponto de vista dos “inimigos”: os mexicanos, cujo país foi invadido, os cubanos, cujo território foi anexado em 1898, os filipinos, submetidos a uma guerra abominável e devastadora no início do século XX – durante a qual morreram 600 mil pessoas que se opunham aos Estados Unidos, determinados, na época, a conquistar o país.

Um fenômeno me incomodou desde que comecei a estudar história. E agora tento explicá-lo em meus livros. É o modo pelo qual o fervor nacionalista (que nos inculcam desde a infância, impondo-nos o juramento de fidelidade à bandeira2 , a veneração do hino nacional e uma retórica “patriótica” muito dirigida) impregna o sistema educacional de todos os países. Fico me perguntando o que seria a política externa dos Estados Unidos se fossem apagadas, pelo menos de nossos espíritos, todas as fronteiras do mundo e considerássemos cada criança como nosso filho, fosse ele de onde fosse. Nessa situação, seria impensável jogar uma bomba atômica em Hiroshima, ou napalm no Vietnã, no Afeganistão ou no Iraque.

Um genocídio apagado

Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação

Quando assumi a redação de meu livro, estava sob a influência do que vivera até então: primeiramente morando com meus pais, numa comunidade negra do sul do país; depois, ensinando numa universidade de moças negras e militando contra a segregação racial. Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca. É verdade que os índios são mencionados, ainda que como figurantes, e rapidamente esquecidos; os negros têm direito a uma aparição, como escravos, depois como homens supostamente libertados. Mas o papel principal é sempre do homem branco.

Da escola primária ao ginasial, ninguém permitiu que eu entendesse a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo como sinônimo de um genocídio que exterminou a população indígena de Hispaniola3. Ninguém me explicou que se tratava da primeira etapa da expansão, supostamente generosa, de uma nova nação, mas que essa expansão significava, na realidade, a expulsão brutal dos índios de quase todo o continente, que ela seria edificada sobre terríveis atrocidades, ao final das quais os sobreviventes seriam mantidos em reservas.

“Era progreessista”

Ensina-se a todos os alunos das escolas norte-americanas o massacre de Boston, que ocorreu às vésperas da guerra da independência contra a coroa inglesa. Cinco cidadãos norte-americanos foram mortos, nessa ocasião, em 1770, por soldados britânicos. Mas quantos alunos sabem que 600 pessoas da tribo dos Péquot (homens, mulheres e crianças), na Nova Inglaterra, foram massacradas em 1637? Ou que centenas de famílias indígenas foram dizimadas, durante a guerra da Secessão, no Colorado, por soldados norte-americanos?

Durante o tempo em que estudei história, nunca ouvi falar dos constantes massacres de negros, perpetrados no silêncio ensurdecedor de um governo assoberbado em seu orgulho de possuir uma Constituição que garante a igualdade de direitos. Em 1917, por exemplo, estourou na Zona Leste da cidade de Saint Louis uma das inúmeras revoltas raciais do período que nossos livros de história (dos brancos) chamam a “era progressista”. Operários brancos, indignados com a chegada de operários negros, assassinaram cerca de 200 pessoas. Um negro norte-americano, W.E.B. Du Bois, escreveu um artigo célebre sobre o assunto, “The Massacre of East St. Louis”. Na época, Josephine Baker declarou: “A própria idéia dos Estados Unidos da América me faz tremer.”

Uma história escondida

Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca

Ao escrever A People’s History of the United States, eu esperava desfechar uma conscientização dos conflitos de classe, da injustiça racial, da desigualdade dos sexos e da arrogância norte-americana. Mas também queria expor a resistência ao poder do establishment, a recusa dos índios em morrer e desaparecer, a rebelião dos negros contra a escravatura e, depois, contra a segregação, as greves organizadas pela classe operária.

Isto porque, omitir essas ações de resistência, essas vitórias – ainda que limitadas – dos “João Ninguém” norte-americanos, significaria fazer crer que o poder está exclusivamente nas mãos dos que têm armas de fogo ou possuem riquezas. Tentei lembrar que as pessoas que aparentemente nada possuem (trabalhadores, negros, mulheres), quando se organizam e protestam em escala nacional, assumem um poder que governo algum pode reprimir com facilidade. Não quero inventar vitórias populares onde elas não existem. Mas achar que escrever um livro de história se resume a enumerar uma ladainha de fracassos significa fazer dos historiadores meros colaboradores de uma espiral regressiva, aparentemente inexorável.

Se a história pretende ser criativa, antecipando um futuro possível sem, entretanto, negar o passado, é necessário, em minha opinião, destacar as novas possibilidades e revelar todos esses episódios enterrados, por ocasião dos quais muitas pessoas mostraram sua capacidade de resistir, ainda que às vezes de forma breve, de se unir – e, às vezes, de vencer. Parto do pressuposto, ou talvez da esperança, de que nosso futuro se encontra mais nos momentos de solidariedade escondidos em nosso passado do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias.

(Trad.: Jô Amado)

1 - No dia 22 de junho de 1944, foi aprovada nos Estados Unidos a GI Bill (Lei do Soldado), que tinha por objetivo “oferecer uma ajuda do governo federal aos ex-combatentes da II Guerra Mundial que desejassem desenvolver uma profissão na vida civil”. Esse programa (uma espécie de ensino gratuito) abriria as portas da universidade a muitos cidadãos norte-americanos de origem humilde. Nos dias de hoje, o cumprimento do serviço militar muitas vezes é um meio que permite a cidadãos menos favorecidos freqüentarem, posteriormente, um curso superior, o que de outra forma lhes seria impossível, devido aos preços inacessíveis das universidades nos Estados Unidos.
2 - N.R.: O juramento, que é recitado em todas as escolas norte-americanas, proclama a fidelidade “à bandeira dos Estados Unidos e à República, da qual é o símbolo. Uma nação indivisível, dirigida por Deus (under God), com liberdade e justiça para todos”.
3 - A Ilha de São Domingos (atualmente, República Dominicana e Haiti).


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