quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A História tem de ser criativa


O futuro dos EUA está ligado à compreensão do nosso passado. Por isso, escrever sobre a história, do meu ponto de vista, nunca é um acto neutral. Ao escrever, espero despertar a consciência da injustiça racial, do preconceito sexual, da desigualdade de classes e do orgulho [hibris] nacional. Também quero trazer para a luz do dia a resistência – de que nunca se fala – das pessoas contra o poder do sistema governante, a recusa dos indígenas a simplesmente desaparecerem, a rebelião dos negros no movimento contra a escravatura e o movimento mais recente contra a segregação racial, as greves feitas pela gente trabalhadora através de toda a história dos Estados Unidos da América, com a intenção de melhorar a sua vida.

Omitir esses actos de resistência é apoiar a visão oficial de que o poder se baseia unicamente nos que têm armas e possuem riqueza. Escrevo para ilustrar o poder criativo das pessoas que lutam por mundo melhor. As pessoas, quando estão organizadas, têm um poder imenso, mais que qualquer governo. A nossa história está impregnada de histórias de gente que resiste, se pronuncia, se entrincheira, organiza, contacta, cria redes de resistência e muda o curso da história.

Não quero inventar vitórias dos movimentos populares. Mas pensar que a escrita da história deve simplesmente apontar a recapitulação dos fracassos que dominam o passado é converter os historiadores em colaboradores de um ciclo interminável de derrotas. Se a história há-de ser criativa e antecipar um futuro possível sem negar o passado, creio que tem que por o acento em novas possibilidades de revelar esses episódios ocultos do passado quando, ainda que seja em breves lampejos, as pessoas mostraram a sua capacidade de resistir, de se unirem e, ocasionalmente, vencerem. Suponho, ou talvez só espero, que o nosso futuro pode encontrar-se nos fugidios momentos de compaixão do passado, em vez dos seus sólidos séculos de guerra.

A história pode ajudar as nossas lutas, se não concludentemente, pelo menos sugestivamente. A história pode fazer-nos abandonar a ideia de que os interesses governamentais e os interesses do povo são os mesmos. A história pode contar-nos a frequência com que os governos nos mentiram, como ordenaram que sectores inteiros da população fossem massacrados, como negam a existência dos pobres, como nos orientaram ao nosso momento actual – a “Guerra Prolongada”, a guerra sem fim. 

É verdade, o nosso governo tem o poder de gastar a riqueza do país como quiser. Pode enviar tropas a qualquer parte do mundo. Pode ameaçar com a detenção indefinida e a deportação de vinte milhões de imigrantes nos Estados Unidos que ainda não têm os seus cartões verdes, nem direitos constitucionais. Em nome do nosso “interesse nacional”, o governo pode deslocar tropas para a fronteira EUA-México, fazer cercas de rede para muçulmanos de certos países, escutar em segredo as nossas conversas, abrir a nossa correspondência, examinar as nossas transacções bancárias e intimidar-nos para que fiquemos calados. O governo pode controlar a informação com a colaboração dos tímidos meios de comunicação. Só assim se explica a popularidade – decrescente em 2006 (33% dos inquiridos), mas ainda alta – de George W Bush. Apesar de tudo, este controlo não é absoluto. O facto de 95% dos meios de comunicação serem a favor da continuação da ocupação do Iraque (fazendo apenas críticas superficiais à forma como esta se processa), enquanto mais de 50% do povo estar a favor da retirada, sugere uma resistência do senso comum às mentiras oficiais. Há que considerar também a natureza volátil da opinião pública, que pode mudar com uma brusquidão incrível. Há que ver como a grande maioria do apoio público para George Bush pai se desvaneceu, logo que se desvaneceu o brilho da vitória da primeira Guerra do Golfo e se impôs a realidade dos problemas económicos.

Há que pensar em como, no começo da Guerra do Vietname em 1965, dois terços dos norte-americanos apoiaram a guerra. Alguns anos depois, dois terços dos norte-americanos opuseram-se à guerra. Que aconteceu nesses três ou quatro anos? Uma osmose gradual de verdade filtrou-se pelas grilhetas do sistema de propaganda – a compreensão de que lhes tinham mentido e os tinham enganado. É o que está a suceder nos EUA enquanto escrevo estas linhas, no Verão de 2006. É fácil sentir-se deslumbrado ou intimidado ao compreender que os que fabricam as guerras têm um enorme poder. Mas uma determinada perspectiva histórica pode servir, porque nos diz que em certos momentos da história os governos descobrem que todo o seu poder é fútil face ao poder de uma cidadania levada à acção.

Existe uma debilidade básica nos governos, por massivos que sejam os exércitos, por imensa que seja a sua riqueza, por muito que controlem a informação, porque o seu poder depende da obediência dos cidadãos, dos soldados dos funcionários públicos, dos jornalistas, dos escritores, dos professores e dos artistas. Quando os cidadãos começam a suspeitar que os enganaram e retiram o seu apoio, o governo perde a sua legitimidade e o seu poder.

Vimos que isto sucedeu em decénios recentes por todo o planeta. Quando despertam uma manhã e vêem um milhão de pessoas encolerizadas nas ruas da capital, os dirigentes de um país começam a fazer as malas e a chamar um helicóptero. Não é fantasia, é história recente. É a história das Filipinas, da Indonésia, da Grécia, de Portugal e Espanha, da Rússia, Alemanha Oriental, Polónia, Hungria, Roménia. Pensemos na Argentina e na África do Sul e em outros sítios onde não parecia haver esperança de mudança e depois houve. Lembremos Somoza na Nicarágua escapulindo-se no seu avião privado, Ferdinando e Imelda Marcos recolhendo apressados as suas jóias e roupas, o Xá do Irão procurando desesperado um país que o aceitasse quando fugiu das multidões em Teerão, Duvalier no Haiti, que penas conseguiu vestir as calças, antes de escapar à fúria do povo haitiano. 

Não podemos esperar que George Bush escape de helicóptero. Mas podemos responsabilizá-lo por catapultar a nação para duas guerras, pela morte e mutilação de dezenas de milhar de seres humanos neste país, no Afeganistão e Iraque, e pelas suas violações da Constituição dos EUA e do direito internacional. Seguramente estes actos enquadram-se no princípio constitucional de “crimes e delitos graves” para a impugnação.

Naturalmente, pessoas em todo o país começaram a pedir a sua impugnação. Apesar disso, não podemos esperar que um Congresso cobarde o impugne. O Congresso que se dispôs a impugnar o Nixon por forçar a entrada num edifício, não impugnará Bush por forçar a entrada num país. Esteve disposto a impugnar Clinton pelas suas travessuras sexuais, mas não impugnará Bush por entregar a riqueza de um país aos super ricos.
Teve o tempo todo o verme que come as entranhas do governo Bush: o conhecimento do povo norte-americano – enterrado, mas numa tumba pouco funda, fácil de desenterrar – de que o governo chegou ao poder não pela vontade popular mas graças a um golpe político. Por isso, podemos estar a assistir à desintegração gradual da legitimidade deste governo, apesar da sua enorme confiança. Existe uma prolongada história de poderes imperiais que saboreiam as suas vitórias, espreguiçam-se, confiam demasiado, e não se apercebem que o poder não é simplesmente um assunto de armas e dinheiro. O poder militar tem os seus limites – limites criados por seres humanos pelo seu sentido de justiça e a sua capacidade de resistir. Os EUA, com as suas 10.000 armas nucleares não conseguiram vencer na Coreia ou no Vietname, não puderam impedir a revolução em Cuba ou na Nicarágua. Tal como a União Soviética com as suas armas nucleares e o imenso exército foi obrigado a retirar-se do Afeganistão. E não pôde impedir o movimento do Solidariedade na Polónia.

Um País com poder militar pode destruir, mas não pode construir. Os seus cidadãos inquietam-se porque as suas necessidades básicas são sacrificadas à glória militar, enquanto os seus jovens são ignorados e enviados para a guerra. O desassossego cresce, cresce e a cidadania funde-se cada vez mais com a resistência, chegam a chegar demasiados para poderem ser enquadrados. Chegará o dia em que se derrubará o inchado império. Em contrapartida, a consciência pública começa a mostrar um descontentamento, vago para começar, sem que haja conexão entre o descontentamento e as políticas do governo. E as pontas começam a ligar-se, a indignação a crescer, e as pessoas começam a pronunciar-se, a organizar-se, a actuar.

Actualmente, em todo o país cresce a consciência da falta de professores, enfermeiras, cuidados médicos, habitação acessível, a medida que se verificam os cortes orçamentais em todos os Estados da União. Um professor escreveu recentemente uma carta no Bóston Globe: “Pode suceder que 600 professores de Bóston sejam despedidos, como consequência do deficit orçamental”, O autor, depois, compara com os milhares de milhões gastos em bombas para, como diz, “enviar crianças iraquianas inocentes para os hospitais de Bagdad”. 

Quando se enevoa o pensamento com o enorme poder que os governos, as empresas transnacionais, os exércitos e a polícia têm para controlar as mentes, esmagar a discordância e destruir a rebelião, devemos recordar um fenómeno que sempre considerei interessante: os que possuem um enorme poder ficam surpreendentemente nervosos quando pensam na sua capacidade de conservar o poder. Reagem quase histericamente perante o que parecem ser sinais insignificantes e não ameaçadores da oposição.
Vemos como o governo norte-americano, blindado nas suas mil máscaras do poder, trabalha intensamente para meter na cadeia alguns pacifistas ou manter um escritor ou um artista fora do país. Recordamos a histérica reacção de Nixon a um homem solitário que se manifestava em frente da Casa Branca: “Prendam-no”!

É possível que os donos da autoridade saibam alguma coisa que eu não sei? Talvez conheçam a sua extrema debilidade. Talvez compreendam que pequenos movimentos podem converter-se em grandes movimentos, que uma ideia que se apodera da população possa chegar a indestrutível. O povo pode ser induzido a apoiar a guerra, a oprimir outros, mas essa não é a sua inclinação natural. Há os que falam de “pecado original”. Kurt Vonnegut questiona-o e fala antes de “virtude original”.

Há milhões de pessoas neste país que se opõem a actual guerra. Quando se vê numa estatística que 40% dos norte-americanos apoia a guerra, isso significa que 60% dos norte-americanos não a apoiam. Estou convicto que a quantidade de pessoas que se opõem à guerra continuará a aumentar e a quantidade de pessoas que a apoia continuará a diminuir. No caminho, artistas, músicos, escritores e trabalhadores da cultura emprestam um poder emocional e espiritual ao movimento pela paz e pela justiça. Amiúde, a rebelião começa como qualquer coisa cultural.

O desafio persiste. Do outro lado há forças imensuráveis: o dinheiro, o poder político, os principais mídia. Do nosso lado estão os povos do mundo e um poder maior que o do dinheiro e o das armas: a verdade. A verdade tem um poder próprio. A arte tem um poder próprio. A velha lição de que tudo o que fazemos importa é a importância da luta popular aqui, nos EUA, e em toda a parte. Um poema pode inspirar um movimento. Um panfleto pode desencadear uma revolução. A desobediência civil pode incitar muita gente e levá-la a pensar. Quando nos organizamos em conjunto, quando nos envolvemos, quando nos pomos de pé, e nos pronunciamos colectivamente podemos criar um poder que governo algum pode suprimir.

Vivemos num belo país. Mas aqueles que não respeitam a vida humana, a liberdade ou a justiça apoderaram-se dele. Agora depende de todos nós recuperá-lo.


Este texto é o primeiro capítulo do livro recentemente publicado por Howard Zinn: “A Power Governments Cannot Suppress” publicado por City Lights Books
* Historiador. Entre as suas obras mais divulgadas e originais está “A People’s History of the United States: 1492 to present”
Este original está em:
http://www.zmag.org/content/showarticle.cfm?SectionID=72&ItemID=11585
Tradução de José Paulo Gascão

http://www.odiario.info/?p=143

Um comentário:

Rodrigo Barradas disse...

Gostaria muito de parabenizá-los. Primeiro porque não conheço praticamente nada sobre Howard Zinn e como não sou fluente em inglês, fica difícil de lê-lo. Sou um grande etusiasta da liberdade e grande admirador de nomes como Chomsky, por exemplo, ao qual já tive o prazer de me corresponder alguma vezes. Enfim, parabéns mais uma vez, por nos proporcionar um pouco de pensamento crítico e racional.

Abraços!

Rodrigo Barradas
rodrigovbarradas@yahoo.com.br