segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O que estamos fazendo no Iraque?

O que estamos fazendo no Iraque?

Após 27 meses de ocupação americana e da escalada de violência e mortes que acarreta por todos os lados, a guerra inventada por Bush segue vitimando também os norte-americanos, sua juventude, suas liberdades e seu modo de viver

Howard Zinn

O Iraque não é um país libertado, e sim um país ocupado. Isto é uma evidência. O termo "país ocupado" tornou-se familiar a nós durante a Segunda Guerra Mundial. Falávamos então de "França ocupada pelos alemães, de Europa sob ocupação alemã". Depois da guerra, falamos da Hungria, da Checoslováquia e do Leste Europeu ocupados pelos soviéticos. Os Nazistas e os Soviéticos ocuparam muitos países. Nós os libertamos dessas ocupações.

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso. A tirania espanhola foi vencida, mas os Estados Unidos transformaram a ilha em base militar, como o que estamos fazendo no Iraque. As grandes companhias americanas implantaram-se em Cuba, como a Bechtel, a Halliburton e as empresas petrolíferas se instalam no Iraque. Os Estados Unidos redigiram e impuseram, com cúmplices locais, a Constituição que deveria reger Cuba, exatamente como nosso governo elaborou, com a ajuda de grupos políticos locais, uma Constituição para o Iraque. Não, isso não tem nada de libertação. É ocupação mesmo.

E é uma ocupação suja. Já em 7 de agosto de 2003, o New York Times relatava que o general americano Ricardo Sanchez, em Bagdá, "preocupava-se" com a reação iraquiana diante da ocupação. Os dirigentes iraquianos pró-americanos apresentaram-lhe uma mensagem que ele nos retransmitiu: "Quando vocês prendem um pai na presença de sua família, cobrem-lhe a cabeça com um saco e fazea-no ajoelhar-se, vocês atingem pesadamente, aos olhos de sua família, sua dignidade e respeito." (nota particularmente perspicaz).

Humilhação e violência

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso

A rede CBS News relatava já em 19 de julho de 2003, bem antes da descoberta dos casos confirmados de torturas na prisão de Abu Graib em Bagdá: "A Anistia Internacional está examinando um certo número de casos de presumidas torturas cometidas no Iraque pelas autoridades americanas. Dos quais um é o caso Khaisan Al-Aballi. A casa de Al-Aballi foi arrasada por soldados americanos que apareceram atirando por todos os lados; prenderem Al-Aballi e também seu velho pai, de 80 anos. Eles acertaram e feriram seu irmão... os três homens foram levados... Al-Aballi diz ter declarado a seus sequestradores: "Nao sei o que vocês querem. Não tenho nada." "Eu pedi a eles que me matassem", conta Al-Aballi. "Oito dias depois, eles o deixaram ir, acompanhado de seu pai... Os oficiais americanos não responderam aos inúmeros pedidos que lhes foram feitos para discutir esse assunto..."

Sabe-se que três quartos da cidade de Falluja (360 000 habitantes) foram destruídos e que centenas de seus habitantes foram mortos durante a ofensiva americana de novembro de 2004 deflagrada sob o pretexto de limpar a cidade dos bandos terroristas que teriam agido dentro de uma "conspiração baathista”. Mas esquecemos que em 16 de junho de 2003, nem um mês e meio depois da "vitória" no Iraque e da "missão cumprida" proclamada pelo presidente Bush, dois repórteres da rede Knight-Rider tinham escrito sobre a zona de Falluja: "Ao longo dos cinco últimos dias, a maior parte dos habitantes desta região afirmaram que não havia conspiração alguma, baathista ou sunita, contra o exército americano mas homens prontos para lutar porque seus parentes tinham sido feridos ou mortos ou eles mesmos tinham sofrido humilhações durante revistas ou barreiras de rua... Uma mulher declarou, depois da prisão de seu marido por causa de caixotes de madeira vazios que eles tinham comprado para (fazer fogo) para se aquecer, que os Estados Unidos eram culpados de terrorismo." Esses mesmos repórteres afirmavam: "Residentes de Agilia – uma aldeia ao norte de Bagdá – alegaram que dois camponeses de lá e mais cinco de uma aldeia vizinha foram mortos por tiros americanos quando estavam tranquilamente regando suas plantações de girassóis, tomates e pepinos".

Soldados nervosos e amedrontados

O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo"

Os soldados enviados a este país – a quem haviam dito que as pessoas os acolheriam como libertadores – e que se vêem cercados por uma população hostil, tornaram-se medrosos, estão deprimidos e puxam o gatilho facilmente, como se viu na libertação, em Bagdá, da jornalista italiana Giuliana Sgrena, em março de 2005, quando o oficial italiano dos serviços de informação Nicola Calipari foi abatido na barreira por soldados americanos nervosos e amedrontados.

Lemos os relatos de GIs furiosos por serem mantidos no Iraque. Um repórter da rede ABC News no Iraque declarou recentemente que um sargento o tinha chamado em particular para dizer-lhe: "Eu tenho minha própria lista dos mais procurados" (Most wanted list). Ele aludia ao famoso baralho publicado pelo governo americano, representando Saddam Hussein, seus filhos e outros membros do regime baathista iraquiano: "Os ases do meu baralho – dizia ele – são George Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz".

Tais sentimentos, assim como os de muitos desertores que se recusam a voltar ao inferno do Iraque depois de uma licença em casa, são agora conhecidos do público americano. Em maio de 2003, uma pesquisa de opinião anunciava que só 13% dos americanos pensava que a guerra estava indo por um caminho ruim. Em dois anos, as coisas mudaram radicalmente. Segundo uma pesquisa publicada sexta-feira, 17 de junho de 2005 pelo New York Times e a rede CBS News, 51% dos americanos acham agora que os Estados Unidos não deviam ter invadido o Iraque e não deviam ter começado esta guerra. Agora 59¨% desaprovam a gestão do presídente Bush da situação no Iraque. E me parece interessante notar que as pesquisas realizadas entre a população afro-americana revelaram constantemente uma oposição de 60% à guerra no Iraque.

A ocupação dos EUA

Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque

Mas existe uma ocupação de pior augúrio ainda que a do Iraque, é a ocupação dos Estados Unidos. Eu me levantei hoje de manhã, li o jornal e tive a sensação de que estávamos mesmo em um país ocupado, que uma potência estrangeira nos tinha invadido. Esses trabalhadores mexicanos que tentam atravessar a fronteira – arriscando a vida para escapar dos funcionários da imigração (na esperança de alcançar uma terra que, cúmulo da ironia, pertencia a eles antes dos Estados Unidos dela se apoderarem em 1848) – esses trabalhadores não são estrangeiros aos meus olhos. Esses 20 milhões de pessoas que vivem nos Estados Unidos, que não têm o estatuto de cidadãos e que em consequência e em virtude do Patriot Act (a lei Patriota), são suscetíveis de serem jogados fora de suas casas e detidos indefinidamente pelo FBI, sem direito constitucional algum – essas pessoas, para mim, não são estrangeiras.. Ao contrário, o grupúsculo de indivíduos que tomou o poder em Washington (George W. Bush, Richard Cheney, Donald Rumsfeld e o resto da camarilha), esses sim, são estrangeiros.

Eu acordei dizendo a mim mesmo que este país estava nas garras de um presidente que foi eleito uma primeira vez, em novembro de 2000, em circunstâncias que se conhece, graças a todo tipo de trapaça na Flórida e por uma decisão do Supremo Tribunal. Um presidente que continua, depois de sua segunda eleição em novembro de 2004, cercado de "falcões" de terno que não se preocupam com a vida humana nem aqui nem em lugar nenhum, cuja menor preocupação é a liberdade, aqui ou em outro lugar e que se lixam para o que será da Terra, da água, do ar e do mundo que deixaremos a nossos filhos ou netos.

Muitos americanos se põem a pensar, como os soldados do Iraque, que alguma coisa está errada, que este país não se parece com a imagem que fazemos dele. Cada dia traz sua dose de mentiras à praça pública. O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo". Passando por cima do fato de que a própria guerra é terrorismo; que chegar na casa das pessoas, levar os membros de uma família e submetê-los à tortura é terrorismo, que invadir e bombardear outros países não nos traz mais segurança, muito pelo contrário.

O sofisma de Rumsfeld

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos

Tem-se uma pequena idéia do que o governo entende por "guerra contra o terrorrismo" quando lembramos da célebre declaração feita pelo secretário americano da defesa, Donald Rumsfeld (um dos "mais procurados " da lista do sargento), quando ele se dirigiu aos ministros da OTAN, em Bruxelas, na véspera da invasão do Iraque. Ele explicou então as ameaças que pesavam sobre o Ocidente (imaginem – ainda falamos do "Ocidente" como uma entidade sagrada, enquanto que os Estados Unidos, que fracassaram em arrebanhar para seu projeto de invasão do Iraque vários países da Europa (entre os quais a França e a Alemanha), tentava cortejar a qualquer preço os países do Leste persuadindo-os de que nosso único objetivo era libertar os iraquianos como os havíamos libertado, a eles, do domínio soviético). Rumsfeld, então, explicando quais eram essas ameaças e porque eram "invisíveis e não identificáveis", pronunciou seu sofisma imortal: "Há coisas que conhecemos. E há outras que sabemos não conhecer. Quer dizer que há coisas que sabemos que, no momento, não conhecemos. Mas há também coisas desconhecidas que não conhecemos. Há coisas que não sabemos que não conhecemos. Em resumo, a ausência de provas não é a prova de uma ausência... Não ter a prova de que alguma coisa existe não quer dizer que temos a prova de que ela não existe."

Felizmente Rumsfeld está aí para nos esclarecer. Isto explica porque a administração Bush, incapaz de capturar os autores do atentado de 11 de setembro continuou seu ataque, invadiu e bombardeou o Afeganistão já em dezembro de 2001, matando milhares de civis e provocando a fuga de centenas de milhares de outros, e não sabe até hoje onde se esconderam os criminosos. Isto explica também porque o governo, sem saber de fato que tipo de armas Saddam Hussein escondia, decidiu bombardear e invadir o Iraque em maio de 2003 contra a ONU, matando milhares de civis e de soldados e aterrorizando a população. Isso explica porque o governo, sem saber quem é ou não é terrorrista, decidiu prender centenas de pessoas no cárcere de Guantânamo em condições tais que dezoito deles tentaram suicidar-se.

Tortura "edulcorada"

O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados

Em seu relatório de 2005 sobre as violações dos direitos humanos no mundo, tornado público em 25 de maio de 2005, a Anistia Internacional não hesitou em afirmar que "o centro de detenção de Guantanamo tornou-se o Gulag de nossa época". A secretária geral da organização, Irene Khan acrescentou: "Quando o país mais poderoso do planeta esmaga sob os pés a primazia da lei e dos direitos humanos, está autorizando os outros a infringir as regras sem escrúpulos, convencidos de ficarem impunes". Irene Khan denunciou também as tentativas dos Estados Unidos de banalizar a tortura. Os americanos, sublinhou ela, tentam tirar o caráter absoluto da proibição à tortura "redefinindo-a" e "edulcorando-a". Ora, lembrou ela, "a tortura ganha terreno desde que sua condenação oficial deixa de ser absoluta". Apesar da indignação suscitada pelas torturas cometidas na prisão de Abu Graib (Iraque), deplorou a Anistia, nem o governo nem o Congresso dos Estados Unidos pediram a abertura de uma investigação aprofundada e independente.

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos. Uma guerra contra nossas liberdades, uma guerra contra o nosso modo de viver. A riqueza do país é roubada do povo para ser distribuída com os super-ricos. Roubam também a vida dos nossos jovens.

Não há dúvida alguma de que essa guerra que já dura dois anos e três meses fará ainda muitas vítimas não somente no estrangeiro, mas no próprio território dos Estados Unidos. A administração diz a quem quiser ouvir que a gente se safará bem dessa guerra porque ao contrário do Vietnã, há poucas vítimas1. É verdade, "apenas" algumas centenas de mortos em combate. Mas quando a guerra terminar, então as vítimas das consequências dessa guerra – doenças, traumatismos – não cessarão de aumentar.

Vítimas da mentira de Estado

A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história

Depois da guerra no Vietnã, veteranos assinalaram malformações congênitas em suas famílias, causadas pelo agente laranja, um potente herbicida muito tóxico, pulverizado sobre as populações vietnamitas Durante a primeira guerra do Golfo em 1991, contaram-se apenas algumas centenas de perdas, mas a Associação dos Veteranos recentemente denunciou a morte de 8 000 deles ao longo destes dez últimos anos. Duzentos mil veteranos, dos seiscentos mil que participaram da primeira guerra do Golfo, queixam-se de mal-estares, de patologias devidas às armas e munições utilizadas durante essa guerra. Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque.

Qual é nosso dever? Denunciar tudo isso. Estamos convencidos de que os soldados enviados ao Iraque só suportam o terror e a violência porque mentiram para eles. E quando souberem a verdade – como aconteceu durante a guerra do Vietnã – eles se voltarão contra seu governo. O resto do mundo nos apóia. A administração dos Estados Unidos não pode ignorar indefinidamente os dez milhões de pessoas que protestaram no mundo inteiro em 15 de fevereiro de 2003 e cujo número aumenta a cada dia. O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados.

Devemos engajar-nos em todas as ações tendo por fim parar com esta guerra. Nunca será demais. A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história. Até constituir um poder que nenhum governo pode reprimir.

(Trad. : Betty Almeida)

1 - Em 20 de junho de 2005, o número de militares americanos mortos no Iraque chegava a 1 724 e o número total de feridos a 12 896 (fonte: http://www.antiwar.com/casualties/)


Fonte clique aqui.

Um comentário:

Nils Skare disse...

o link da L-dopa agora é
ldopaeditora.wordpress.com

Abraço