O Tio Sam que você nunca viu
Nos arredores de Boston, em uma lápide no parque nacional, lê-se a inscrição: “Aqui jaz uma mulher índia, uma wampanoag, cuja família e tribo entregaram suas vidas e suas terras para que esta grande nação pudesse nascer e prosperar”. Muitos cidadãos americanos, gente decente e bem intencionada – diz Chomsky –, desfilam continuamente junto a esta tumba, lendo o epitáfio sem exibir a mínima reação, quando não um sentimento de satisfação pela homenagem prestada a esta pobre gente. Provavelmente não fariam o mesmo diante de um Auschwitz ou um Dachau, tanto que o Dia Anual de Lembrança do Holocausto é um evento nacional nos Estados Unidos. Sete grandes museus se espalham pelo país recordando o massacre nazista e nenhum sobre a escravidão capitalista. O genocídio dos nativos – cuja população girava em torno de
O historiador Howard Zinn mostra em “A Outra História dos Estados Unidos”, ainda sem tradução para o Brasil, a que não é ensinada nas escolas e universidades, e tampouco escrita nos livros e revistas. “Se a história tem que ser criativa – para assim antecipar um possível futuro sem negar o passado – deveria, creio eu, se centrar nas novas possibilidades baseando-se no descobrimento dos fatos esquecidos do passado, nos quais, ainda que seja só em breves pinceladas, as pessoas mostraram uma capacidade para a resistência, para a unidade e, ocasionalmente, para a vitória.” Ao se referir à Declaração de Independência redigida por Thomas Jefferson e proclamada em 4 de julho de 1776, afirma que, embora ela enunciasse “que todos os homens são criados iguais, que seu Criador lhes dá certos direitos inalienáveis, entre outros o da Vida, o da Liberdade e o da Felicidade”, ocorreu, no entanto, que uma grande maioria dos americanos foi claramente excluída dessas conquistas, como os índios, os negros, os brancos pobres e as mulheres. A estes foram oferecidas as aventuras e as recompensas do serviço militar, para que lutassem por uma causa que talvez nunca sentiram como própria. Zinn fala da vitória final em 1781, em Yorktown, na Virginia, na qual os ingleses foram derrotados com a ajuda de um potente exército e frota francesa bem como dos marginalizados da sociedade.
Persiste até hoje nos Estados Unidos uma verdadeira mitologia em relação aos pais fundadores da pátria. Segundo Zinn, eles não buscavam o equilíbrio de poder, mas sim um mecanismo que desse o total controle à classe dominante da época. “O certo é que não queriam um equilíbrio igualitário entre escravos e patrões, entre os sem-terra e os latifundiários, entre os índios e os brancos”, escreveu. Os fundadores não levaram em conta as mulheres, que significavam a metade da população, mas sequer foram mencionadas na Declaração de Independência e estiveram ausentes da Constituição, sendo a parte invisível da nação.
A outra guerra civil é o termo utilizado por Zinn para analisar o incremento da luta de classes nos Estados Unidos ao longo de todo o século 19, ausente dos livros de história. Com a industrialização, aparecem os operários e o conflito capital versus trabalho.
As greves não são apenas por salário, mas também por redução de jornada laboral e direito à sindicalização. Em 1844, quatro anos antes do Manifesto Comunista, saiu no "Awl" o seguinte texto: “A divisão da sociedade entre as classes produtivas e as não-produtivas e a distribuição desigual do valor entre elas nos leva em seguida a outra distinção: a do capital e mão-de-obra (...) a mão-de-obra agora se converte em mercadoria (...) o capital e a mão-de-obra estão enfrentados .”
Algumas categorias, como as feministas, passaram a fazer greves exigindo não apenas salário igual para a mesma tarefa realizada, como também o fim da opressão sexual. Muitas delas se aliaram aos negros, enquanto alguns sindicatos de trabalhadores brancos exigiam que os trabalhadores de cor criassem os próprios na luta pela desigualdade racial e de gênero.
A busca por uma sociedade mais justa – vista como socialista – foi intensa no final do século 19 e principalmente no século 20 dentro dos Estados Unidos. Escritores famosos, como Upton Sinclair, Jack London, Theodore Dreiser, Frank Norris e outros, defendiam publicamente o socialismo, ao mesmo tempo em que atacavam violentamente o capitalismo. Parte dos trabalhadores, dando-se conta de que a raiz de sua miséria estava no sistema capitalista, começou a trabalhar por um novo tipo de sindicato. Em junho de 1905, na cidade de Chicago, cerca de duzentos socialistas, anarquistas e sindicalistas de todas as partes do país fundaram o Industrial Workers of the World (IWW), que liderou greves, marchas, concentrações, grupos de estudos e publicações, sendo sistematicamente atacado e perseguido pelo Estado. As mulheres socialistas, que formavam parte do movimento feminista, fizeram uma grande campanha pelo sufrágio universal e pela igualdade no casamento e na vida sexual. Margaret Sanger, no seu livro “Woman and the New Race”, mencionado por Zinn, afirmava que “nenhuma mulher pode considerar-se livre se não possui e controla seu próprio corpo. Nenhuma mulher pode se considerar livre até que possa escolher conscientemente se será mãe ou não”.
Embora as mulheres tenham conseguido o direito ao voto, e apenas em 1920, após a aprovação da 19ª Emenda Constitucional, muitas delas, como Emma Goldman, sabiam que apenas o sufrágio universal não as ajudaria em sua emancipação. Era fundamental continuar a luta – dizia Goldman – reafirmando sua personalidade, tendo direito sobre seu corpo, negando-se a ter filhos a não ser que os deseje, recusando-se a ser uma empregada de Deus, do Estado, da sociedade, de seu marido, de sua família, enfim, fazendo sua vida mais simples, porém, mais rica e profunda. Somente isso, e não o voto, libertará a mulher.
As reformas de Roosevelt para salvar o capitalismo da grande crise foram importantes, mas não fundamentais. Na realidade, foi a Segunda Guerra Mundial que debilitou a velha militância trabalhista dos anos 1930, já que o conflito passou a gerar milhões de novos empregos com salários mais altos. O New Deal só havia reduzido o desemprego de 13 para 9 milhões de pessoas. Além disso, a guerra aumentou o patriotismo e a união de todas as classes para derrotar os inimigos externos, enfraquecendo assim a luta contra os monopólios e as greves por melhorias sociais. Em 1948, o Tratado de Ajuda Externa – conhecido como Plano Marshall – exigia dos que aceitassem a “ajuda” que comprassem produtos manufaturados dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que obrigavam as nações européias e suas colônias a abrirem seus mercados aos investidores americanos sobre uma base de igualdade.
Zinn termina seu livro mostrando que o Vietnã foi a primeira grande derrota do império global americano no pós-Segunda Guerra Mundial, o que se deveu à luta dos camponeses revolucionários e ao movimento de protestos dentro dos Estados Unidos. Analisa os novos movimentos de mulheres, negros, índios e carcereiros nos anos 1960 e 1970. Mostra como Watergate, com a saída de Nixon, deixou intacto o sistema, tanto que as multinacionais atuaram na queda de vários governos, principalmente na América Latina. Comenta o trabalho da Agência Central de Inteligência e da Comissão Trilateral, esta criada para favorecer a união entre Japão, Europa Ocidental e Estados Unidos na luta, não contra um comunismo monolítico, mas sim contra os movimentos revolucionários do Terceiro Mundo que questionavam o sistema capitalista. Não deixa de falar de Carter-Reagan-Bush e o consenso bipartidista.
Sem dúvida, trata-se de um grande livro para conhecer uma história que sempre nos foi contada de outra maneira. A obra foi escrita em poucos anos, mas o seu autor conta com mais de vinte de pesquisa e ensino e tantos outros de participação em movimentos sociais. Só assim se consegue escrever a outra história dos Estados Unidos.
Waldir José Rampinelli, professor de história da América na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com mestrado
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Fonte: http://www.an.com.br/anexo/2008/fev/10/0ide.jsp